Mensagem de Ano Novo do reitor Luiz Bevilacqua
Discurso do reitor da UFABC, professor Luiz Bevilacqua, proferido em encontro interno que reuniu professores e técnicos administrativos, realizado no final do ano passado.
Completamos em dezembro de 2006 pouco mais de um ano de existência oficial, isto é, da designação do primeiro Reitor pró-tempore desta Universidade. Não é preciso recordar todas as dificuldades que enfrentamos e turbulências pelas quais passamos, mas que estamos superando, não sem perdas, desgastes e tensões. Vamos continuar no caminho que busca atingir o mais alto ideal universitário carregando, sem dúvida, cicatrizes que marcam as batalhas.
O modelo que norteou a fundação da UFABC é singular. Não por capricho, mas com a intenção de resgatar a idéia do mais profundo ideal universitário, expresso com grande felicidade por Erwin Schrödinger no prefácio de seu livro What is life . Depois de comentar em um dos primeiros discursos sobre interdisciplinaridade em 1944, Schrödinger, insistindo na necessidade da síntese do conhecimento a despeito da inevitável tensão entre universalidade e especialidade, conclui falando a cientistas:
Eu não consigo ver escapatória desse dilema (exceto se nosso verdadeiro objetivo isto é o genuíno ideal universitário for perdido para sempre) a não ser que alguns de nós nos aventuremos a embarcar na síntese de fatos e teorias, a despeito do conhecimento incompleto e de segunda mão de alguns desses fatos e teorias, e com o risco de passarmos por tolos.
Eu não poderia fazer melhor resumo da pedra fundamental desta Universidade. Mais do que em 1944, temos hoje os elementos e os conhecimentos que não são apenas necessários para realizar essa síntese, mas, que clamam pela concretização dessa trajetória convergente. Precisamos, muitos de nós, nos aventurar por caminhos desconhecidos e ter a coragem de aprender como neófitos, mas confiantes que a bagagem que trazemos da nossa própria formação nos permitirá observar de novos ângulos e descobrir novos aspectos desse fenômeno ou dessa teoria que é invisível aos olhos do especialista. Todas as vezes que nos lançamos na busca de novos caminhos no universo da ciência raríssimas vezes tomamos os trilhos tradicionais. Essa riqueza, a coragem e certo descomprometimento com a tradição de determinada área que nos parece estranha é que nos leva às grandes descobertas ou ao ridículo. É o preço que se paga pela pesquisa mais genuinamente digna desse nome.
Foi dentro desse espírito de liberdade acadêmica e de coragem intelectual para enfrentar os novos desafios que se concebeu esta Universidade. Esse é o ethos fundamental que deve permear todas as regras, estatutos, regimentos e princípios de convivência entre todos os participantes dessa Instituição. Não são as leis e as regras que devem preceder a nossa existência como instituição, que sustenta ideais próprios, preestabelecendo assim as formas de nossa conduta. A nossa própria realidade, construída ao longo do tempo dentro daqueles ideais que escolhemos como alvo, é que vai requerer regras e leis que facilitem o caminho na direção do nosso objetivo último. Quero dizer, não façamos das regras instrumento de escravidão, mas antes, que promovam a nossa liberdade.
Quebramos tradições para levar adiante o nosso projeto, eliminando departamentos para facilitar a convergência de disciplinas. Quebramos tradições criando disciplinas obrigatórias que, além de deixar nos nossos estudantes a marca de uma educação científica, humanística e tecnológica, deve ser unificadora para o nosso corpo docente. Isto é, todo o professor deve dominar os princípios básicos das disciplinas. Significa dizer que todos devem ter a mesma marca que os nossos alunos.
Quebramos tradições ao instituir a entrada dos estudantes para a Universidade e não para este ou aquele curso. Quebramos tradições ao instituir um Bacharelado em Ciência e Tecnologia que alguns têm confundido com uma importação do protocolo de Bolonha. Quebramos tradições ao propor novas designações para alguns dos cursos de graduação em engenharia.
Muitas outras tradições precisam ser quebradas em nome da recuperação do verdadeiro espírito universitário.
Quando se abriram tantas oportunidades para se representar e simular fenômenos naturais, socioeconômicos ou artefatos complexos, produtos do engenho humano? Hoje, matemática e computação se complementam para permitir o desenvolvimento de técnicas de modelagem. Porque não explorar esse tema com profundidade nesta universidade? Particularmente, para desafios ainda pendentes nas áreas de biologia, ecologia e medicina, só para dar alguns exemplos. Porque não cosmologia ou cognição? A investigação dos processos cognitivos é, talvez, um dos desafios mais importantes do nosso tempo, desde as questões mais básicas de neurociência até as aplicações em automação e robótica. Tendo chegado pertíssimo da resposta à pergunta de Schrödinger, o que é a vida? com a descoberta da estrutura do DNA e a perspectiva concreta de se desvendar a função de cada gene, os cientistas se debruçam agora sobre a uma nova questão o que é a consciência? .
Em que época se teve tanta oportunidade de observar o micro e o macro? Imagine a enorme frente de desafios que se abriu com essas possibilidades de observação. As leis clássicas da física e da mecânica são inadequadas e falham ao tentar representar a realidade nessas escalas. Os conhecimentos de mecânica quântica e relatividade geral são cada vez mais centrais e indispensáveis para o progresso científico e tecnológico. Mas até quando? O que está por vir? O avanço na capacidade de observar sempre desencadeou ondas de novas teorias. Por que não sair da UFABC algumas dessas novas teorias?
E o que dizer do mundo complexo em que vivemos do ponto crítico na história da humanidade que marca a trajetória atual. Quais as razões sociológicas subjacentes a certas atividades humanas como educação, esporte e religião intelecto, corpo e alma que vem reunindo multidões de forma organizada? Isto tem algum significado ou conseqüência para o nosso futuro? Novamente, na nossa historia a religião ocupa lugar crítico na relação entre os povos. Isto é fundamental na interpretação dos trágicos acontecimentos atuais no Oriente Médio.
Se os crimes perpetrados por alguns poderes do Ocidente procuram abrigo sob a égide da Democracia, aqueles perpetrados por alguns poderes do Oriente Médio levantam a questão sobre a possível convicção profunda do Islã de que para Alá não existe morte. A morte é fruto de uma percepção incompleta da condição humana. A Universidade não pode ficar alheia a essas questões que afetam profundamente a todos, fazendo-nos refletir sobre o que somos e como podemos conviver em sociedade.
Não devemos pôr tetos para limitar nossa estatura e capacidade de olhar longe. Certamente todas essas considerações exigem paixão, coragem e força. Exigem, sobretudo baixa aversão ao risco. Requerem que se coloque o avanço do conhecimento precedendo a autovalorização e a própria carreira, sendo essa conseqüência daquela e não o contrário.
Mas essa bandeira deve ser hasteada para que todos a vejam e entendam. Se para muitos de nós este modelo é singular cheio de novidades o que dirá para os que estão fora de nossos muros? A universidade foi muito acusada de se fechar numa torre de marfim, de se colocar inacessível à sociedade. A reação a essa acusação, quando foi assumida pelos legítimos representantes sociais, se concretizou numa crescente valorização da atividade que se denomina de Extensão . A UFABC procurou se tornar visível à sociedade por meio da cooperação com outras instituições públicas ou privadas para solução de alguns problemas mais ou menos críticos com impacto socioeconômico. As engenharias tiveram e têm um papel essencial nessas atividades. Mas, a meu ver, a Universidade precisa compartilhar ainda mais com a sociedade aquilo que ela tem de mais essencial, o conhecimento. Falta-nos assumir essa função missionária de sair às ruas e divulgar o conhecimento mostrando como é bom, nobre e prazeroso conhecer. Cabe a alguns de nós a tarefa de levar à sociedade, em linguagem simples, as riquezas do conhecimento científico, os segredos dos fenômenos naturais e a engenhosidade dos artefatos produzidos pelo homem.
Professor universitário não é uma profissão como outra qualquer. Talvez seja a que mais fielmente se aproxime de etimologia da palavra profissão, quando professamos uma sólida confiança no poder da razão e na obstinação em desvendar o que está oculto, inventar o que não existe e criticar para não entrar em contradição e erro. Além dos professores, todos os servidores técnicos, administrativos e também os alunos participam dessa mini-sociedade com o mesmo ânimo e motivação, porque assim como o sangue que corre nas veias leva vida a todas as partes do corpo, também o ideal universitário permeia a todos os que participam da Universidade, mantendo-a viva, dinâmica e criativa.
Em última análise a nossa tarefa não é tanto investigar as diferentes facetas daquilo que já é, mas, sobretudo buscar aquilo que virá a ser.
Por todas essas razões a institucionalização das carreiras universitárias e a participação dos alunos não podem ser regidas por padrões comuns a outras organizações sociais. As regras que regem as relações entre membros da Universidade têm que ser distintas pela própria natureza dessa Instituição. Abandonar esse pressuposto é colocar em risco os mais legítimos objetivos da academia subjugando-os a requisitos mais adequados a relações empregado-patrão.
Não quero encerrar 2006, sem prestar uma homenagem e um agradecimento ao Professor Hermano Tavares, a quem coube a tarefa de dar partida na implantação desta Universidade. A UFABC deve muito a esse homem que não poupou esforços para levar adiante a idéia original que sustenta nosso projeto acadêmico. Se quisesse definir o traço mais impressionante da personalidade dele eu diria que é uma pessoa que quer abraçar o Brasil inteiro de uma só vez .
Luiz Bevilacqua
Reitor da UFABC
Dezembro de 2006
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