Por uma antropologia dialógica
Sabemos que a mudança cultural é algo que faz parte da constituição essencial da cultura. A mudança pode ocorrer por reações e reajustes endógenos e por motivações exógenas, advindas do contato intercultural, marcadas ou não por pressões e imposições externas. As trocas culturais entre sociedades diferentes é algo bastante comum e importante, pois possibilita que os membros de uma sociedade pensem sobre como organizam sua vida social, sobre seus tabus, interditos e pré-conceitos e revejam seu modus vivendi. A dinâmica cultural significa um dado fundamental para toda e qualquer sociedade e é um sinal de que a cultura está viva, em plena saúde.
Ao se falar em relação interétnica, há uma questão que se relaciona diretamente com ela que é a do relativismo cultural.
O relativismo cultural é uma teoria que implica a idéia de que é preciso compreender a diversidade cultural e respeitá-la, reconhecendo que todo sistema cultural tem uma coerência interna própria. Originalmente, a concepção de relativismo cultural tinha seu uso relacionado a um princípio operacional, metodológico. Assim pensado, o relativismo cultural é um instrumento metodológico fundamental para que o pesquisador realize, em culturas diferentes da sua, um trabalho antropológico sério, compreendendo que os traços culturais têm um significado e compõem o sistema cultural daquela sociedade ou grupo social.
Os problemas começam quando o relativismo cultural é radicalizado, absolutizado, e seu significado é deslocado desse princípio metodológico. Sua radicalização prevê, na maioria das vezes, o não contato entre povos diferentes e a idéia de que se ele ocorrer será, inexoravelmente, ruim, uma imposição cultural de um grupo sobre o outro. Assim, não é raro vermos posições extremadas quanto às possíveis relações entre etnias indígenas, por exemplo, e grupos outros da sociedade envolvente. Elas são vistas como um tipo de intervenção que é necessariamente destrutiva e perigosa desses grupos em relação às etnias indígenas. Desse modo, uma possível relação dialógica entre etnias é obstruída com base na preservação fantasiosa de uma pretensa pureza cultural. O relativismo passa a ser paralisante.
Pensando no quadro de penúria e discriminação em que se encontram os indígenas brasileiros, é importante pensar em como isso pode ser revertido e como pensá-los como um povo que tem direitos e que são grupos sociais em dinamismo.
É fato que pensar na relação entre os grupos indígenas brasileiros e quaisquer grupos nacionais leva-nos, imediatamente, a pensar no intenso processo de exploração a que foram submetidos em nossa história quando do contato que tiveram não só com os colonizadores, mas, posteriormente, com outros grupos de interesse que representavam e representam uma forma de obtenção de lucros e vantagens. No entanto, a questão que se coloca é a de que seria justo e expressão de respeito aos direitos fundamentais das etnias indígenas, que, na história presente, esses povos pudessem, ao menos, usufruir dos benefícios dos "civilizados" e ter acesso às condições fundamentais de cidadania.
A questão dos direitos humanos pode ser aqui evocada. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, estabelece direitos que são universais, que estão acima de quaisquer particularidades. O direito à vida é um desses direitos universais. O confronto entre relativismo cultural, que enfatiza a particularidade das culturas e de seus valores, e direitos humanos, que universaliza valores considerados para além dessas particularidades, tem acontecido entre os defensores dos dois lados. Uma das maneiras pela qual essa polarização tem sido resolvida é por meio da idéia de que é importante valorizar uma relação dialógica entre diferentes culturas, que possibilite a superação de conflitos e o estabelecimento de um acordo entre elas.
O diálogo entre culturas distintas sobre um determinado valor ou prática pressupõe o contato entre elas e não que fiquem e permaneçam estanques como postula o relativismo cultural radical. Por isso, é preciso relativizar o relativismo cultural, no sentido de vê-lo não como um princípio absoluto, mas como um instrumento que possibilite o encontro de forma respeitável. Essa relativização é capaz de evitar que a diferença, exaltada, contrarie os valores dos direitos humanos como uma forma de justificar os regimes de segregação, por exemplo. Se o direito à mudança não for respeitado, o direito à diferença pode transformar-se em obrigação de diferença.
O encontro intercultural é fundamental para que uma sociedade possa pensar sobre si mesma e compreender que sua cultura não pode ser usada como força argumentativa inquestionável para explicar e justificar tudo, inclusive os atos de violência e desrespeito aos direitos humanos.
Podemos ilustrar a importância de uma relação dialógica entre culturas por meio do exemplo observado, em 1957, pelo antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira acerca da prática do infanticídio entre os Tapirapé e a reação a essa prática por parte de missionárias católicas que viviam na aldeia.
Por questões relacionadas à sobrevivência, os Tapirapé tinham como costume eliminar o quarto filho. Assim, segundo eles, a população se manteria em número reduzido (aproximadamente 1000 habitantes) e poderia garantir que o ecossistema local supriria as necessidades de sobrevivência do grupo. Essa prática acompanhava os Tapirapé por muito tempo, por isso, estava enraizada entre eles. Tanto que, na época da pesquisa feita por Cardoso de Oliveira, o número de habitantes da aldeia era de apenas 54 indígenas, mas eles continuavam a praticar o infanticídio.
As missionárias, diante do infanticídio do quarto filho, argumentaram contra essa prática evocando princípios religiosos sobre a vida como um dom divino e que por isso precisa ser preservada. Com esse argumento, o que as freiras diziam não tinha sentido para os Tapirapé que valorizavam, prioritariamente, a vida da coletividade e não a do indivíduo. No entanto, ao mudarem a argumentação e ao focalizarem sobre a questão da grande diminuição dos indivíduos na aldeia, ameaçada ainda mais com o infanticídio do quarto filho, as freiras tiveram uma resposta positiva dos indígenas que reviram essa prática tradicional e que ao que parece a abandonaram.
O exercício da argumentação entre culturas diferentes mostra-se essencial para uma troca intercultural baseada na ética e no respeito à diferença. A ética e a abertura para a argumentação podem, então, intermediar a aparente contradição posta entre a universalidade dos direitos humanos e a afirmação do direito à diversidade cultural.
A tensão entre direitos humanos e relativismo cultural pode ser vista entre os Suruwahá, etnia indígena localizada na bacia do rio Purus, sudoeste do Amazonas e que conta com aproximadamente 144 membros. Entre os Suruwahá, o nascimento de uma criança que apresenta alguma anomalia física, bem como de filhos considerados ilegítimo e o de gêmeos, é considerado uma maldição e uma ameaça ao bem-estar de toda a tribo. Assim, há a prática do infanticídio entre eles quando ocorre um caso desse tipo.
Em 2005, nasceram Iganani e Sumawani, respectivamente com paralisia cerebral e pseudo-hermafrodismo. Ambas foram salvas do infanticídio por intervenção das avós e de outros membros do grupo familiar.
Os Suruwahá, no entanto, não são um povo completamente isolado do contato com os grupos da sociedade envolvente. Esses índigenas compreendem, de maneira geral, os malefícios e os benefícios produzidos pelos "brancos". Eles sabem, por exemplo, que há recursos médicos no "mundo branco" que poderiam beneficiá-los e foi exatamente por isso que Iganani e Sumawani não foram mortas ao nascer. O próprio cacique da tribo propôs aos pais a intervenção da medicina do "branco" para o tratamento das crianças e disse que se elas fossem curadas seriam reinseridas na sociedade tribal. Houve uma opção pela vida, neste caso.
Diante disso, Sumawani e Iganani foram levadas para São Paulo, a fim de serem tratadas pela medicina "branca". Depois de muita polêmica sobre os casos, que foram divulgados pela grande mídia, as crianças receberam tratamento adequado. Sumawani está de volta à aldeia. Passou por uma cirurgia reparadora e foi constatado que é uma menina. Ela precisa tomar medicamentos à base de hormônio para se desenvolver. Iganani ainda recebe tratamento, em Brasília. Houve uma evolução bastante positiva de seu quadro, depois de passar por cirurgia, inclusive. A mãe de Iganani, contudo, tem sofrido muito em relação ao possível retorno para sua aldeia. A criança sempre apresentará dificuldades quando ao desenvolvimento e isso implica em ameaça quanto à própria vida dela e da mãe na comunidade indígena. A tensão entre o direito à vida, direito considerado universal, e os particularismos culturais é forte nesse caso. A saída para isso é ouvir os membros desse grupo e dialogar com eles, compreendendo que estão num constante dinamismo e que suas reivindicações devem ser levadas em consideração.
Assessoria de Comunicação e Imprensa
UFABC
30/06/2008
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