UFABC e os resultados de seu primeiro vestibular
Texto do pró-reitor de pós-graduação, Armando Zeferino Milioni, sobre os métodos de seleção aplicados pela universidade
Suponha que você é o responsável pela seleção de um atleta que comporá a equipe olímpica do seu clube. O processo de seleção convergiu para um dentre dois candidatos os quais você submete a uma corrida que ambos completam em tempos idênticos. Você examina os dados de preparação dos dois candidatos e descobre que o primeiro treinou com equipamentos e técnicos profissionais e em pistas apropriadas, enquanto o segundo não contou com nada disso. De posse desses dados, e só deles, qual dos dois candidatos você escolheria para ser treinado pelo seu clube?
Se você escolheu o segundo é porque você acredita que resultados idênticos alcançados a partir de níveis distintos de preparação indicam que quem se preparou em condições menos favoráveis tende a ter um talento natural superior e, portanto, maior potencial.
É nisso que acreditam os professores e estatísticos responsáveis pela elaboração do vestibular da Unicamp. Mas eles não chegaram a essa conclusão por mera intuição. Eles se debruçaram sobre dados históricos de desempenho de alunos nos cursos que fizeram na Unicamp e nas notas obtidas por eles no vestibular e constataram que, dentre os alunos que ingressaram com notas idênticas no vestibular, os egressos de escola pública tinham desempenho em média superior ao dos egressos das escolas privadas, os quais, ao menos teoricamente, se prepararam para o vestibular em condições mais favoráveis.
A parte mais interessante dessa história, contudo, começa com a pergunta que esses técnicos se fizeram a partir desse ponto. Para compreendê-la, é mais fácil retornar ao dilema da escolha do atleta. Suponha agora que aquele primeiro atleta, que havia se preparado em melhores condições, terminou a corrida um centésimo de segundo mais rápido. E agora, qual a sua decisão? Essa diferença mínima é suficiente para você deixar de acreditar que o potencial do segundo é superior ao do primeiro?
Transportada para o problema do vestibular, a pergunta se manifesta assim: até quanto, em média, a nota no vestibular de um candidato egresso do ensino público pode ser inferior à de um egresso do ensino privado e, ainda assim, assegurar que dentro da universidade o desempenho do primeiro será no mínimo igual ao do segundo?
Examinando os dados com uma abordagem científica e aplicando técnicas estatísticas sofisticadas, que geram resultados confiáveis, os técnicos da Unicamp investigaram a resposta a essa questão e concluíram que a nota de um egresso do ensino público pode ser aumentada em 30 pontos, ou 5,6% da média de aprovação normalizada, que se situa em torno de 540 pontos. Se ele for de etnia parda, negra ou indígena, esse número sobe para 40 pontos, ou 7,4% da mesma referência. Em função disso, a Unicamp alterou a estrutura do seu vestibular, segura de que a nova sistemática que leva em consideração esses resultados aperfeiçoa o processo de seleção, garantindo à universidade o ingresso dos melhores talentos. Uma solução criativa que pratica uma ação afirmativa mantendo a meritocracia. Há cerca de três meses a USP tornou pública a intenção de adotar o mesmo sistema a partir de 2007, apenas adaptando os números a seus próprios dados.
Na prática, o resultado desse exercício guarda uma relação com a adoção do sistema de cotas. Ao fixar um adicional à nota do vestibular de um grupo específico de vestibulandos, a universidade admite, tal qual no sistema de cotas, candidatos desse grupo com nota absoluta no vestibular inferior a de outros que não pertençam ao grupo, mas sem especificar em que quantidade o fará. Essa quantidade será conhecida ao término do exercício e será uma função do adicional atribuído à nota. Quem estabelece a cota cai na situação oposta. Fixa a quantidade de vagas e, ao término do exercício, descobre qual foi o acréscimo aplicado à média dos cotistas para igualá-la à dos não cotistas.
Passemos então ao que foi feito na UFABC que, em julho deste ano realizou o seu primeiro exame vestibular. Sem dados históricos disponíveis, a UFABC não teria como praticar exercício semelhante ao conduzido na Unicamp, ou na USP. Todavia, disposta a pôr em prática uma ação afirmativa, a UFABC anunciou que reservaria 50% de suas 1.500 vagas como cotas para egressos das escolas públicas. Dessas 750 vagas, 206 seriam reservadas para candidatos de origem parda, negra ou indígena, número que respeita a proporção dessas etnias na população do estado de São Paulo de acordo com o IBGE. O anúncio dessa intenção teve conseqüências claras. Para o vestibular da UFABC se inscreveram 12.508 candidatos numa proporção entre egressos de escolas públicas (9.077) e de escolas privadas (3.431) de 2,6 para 1, quase o quíntuplo do observado no vestibular de 2006 da Unicamp (0,56 para 1) e mais de seis vezes o observado na UFSCar (0,43 para 1). Um sinal de que o anúncio das cotas estimulou a inscrição dos egressos de escolas públicas.
O desempenho dos cotistas e dos não cotistas na primeira fase do vestibular foi bastante distinto. A média do primeiro grupo foi igual a 41,9 em 100, enquanto o segundo grupo obteve média 52,8. A diferença de 10,9 pontos corresponde a 24,3% da média geral da primeira fase, que foi igual a 44,9. Mas a UFABC exigiu um rendimento mínimo de 50% nessa primeira fase, uma barreira elevada e raramente praticada em vestibulares das instituições públicas e privadas do estado de São Paulo. Com isso, os aprovados para a segunda fase compunham um grupo bem mais homogêneo. Tanto assim que a média final dos primeiros 1.500 aprovados foi de 64,1 pontos em 100; a dos 750 cotistas foi igual a 61,1 e a dos não cotistas igual a 67,1. A diferença de exatos 6 pontos corresponde a apenas 9,4% da média geral. Como a UFABC incluiu cotas para etnias específicas dentro das cotas reservadas aos egressos do ensino público, esses 9,4% se comparam diretamente e não se distanciam muito dos 7,4% praticados na Unicamp.
A adoção do sistema foi suficiente para que 158 alunos egressos de escolas públicas ingressassem na UFABC. Desses 158, 43 eram de origem étnica parda, negra ou indígena. O último desses 158 alunos ocupou a ordem de classificação número 1.805, o que significa que há 147 alunos egressos de escolas privadas com média final igual ou superior à desse último classificado que não constam da primeira lista dos aprovados. A UFABC explicita esses números de forma transparente, já que acredita na prática da política de cotas no contexto acima, isto é, como uma ação afirmativa que, além de ir ao encontro da demanda social, simultaneamente aperfeiçoa o vestibular, admitindo à universidade os melhores talentos. Ainda que, eventualmente, uma vez dentro da universidade, alguns alunos talvez exijam um esforço de lapidação superior ao de outros, tarefa que deverá estimular e desafiar os professores da UFABC.
Armando Zeferino Milioni
Pró-Reitor de Pós-Graduação
Universidade Federal do ABC
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