“Nossa Casa” ensina Português a refugiados como língua de acolhimento
Alunas de grupo de estudos voltado a direitos humanos e relações internacionais idealizaram projeto que foi além de oportunidade de ingresso e acolhimento de refugiados.
A última edição do relatório “Refúgio em Números”, elaborado pelo Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra), com base em dados do Comitê Nacional para Refugiados e divulgado pela Agência da Organização das Nações Unidas (ONU) para Refugiados (ACNUR), mostra que o Brasil reconheceu cerca de 60 mil pessoas como refugiadas desde 1985. Só em 2021, mais de 29 mil solicitações dessa natureza foram registradas no país.
Esse deslocamento humano chamou a atenção de alunas do Grupo de Estudos de Direitos Humanos e Relações Internacionais (GEDHRI) da UFABC, coordenado pelo professor José Blanes Sala. Elas decidiram atuar no acolhimento das pessoas em situação de refúgio e vulnerabilidade e, em 2018, apresentaram o projeto de extensão “Nossa Casa”. Vinculada à Cátedra Sérgio Vieira de Mello, a iniciativa atuou com três pilares: 1 — ensino de português como língua de acolhimento, 2 — socialização e integração local e 3 — criação de ambientes de trocas, diálogos e interculturalismo.
Até o final de 2022, o projeto recebeu mais de 500 pessoas diretamente no curso de português — mais que o dobro disso de pessoas com algum tipo de vínculo com os alunos matriculados. Trata-se de pais, mães e filhos que chegavam ao Brasil, vindos de mais de 20 países, dentre os quais Síria, Egito, Haiti, Venezuela e Iraque.
A ex-professora voluntária e coordenadora pedagógica no projeto, Mariana Eunice Alves de Almeida, pesquisa a questão de pessoas refugiadas na pós-graduação de Ciências Humanas e Sociais. Ela lembra que a Constituição Federal (artigo 5º) impõe garantias da possibilidade de estrangeiros exercerem seus direitos em igualdade de condições com os nacionais. Segundo a pesquisadora, o ensino do português como língua de acolhimento é extremamente positivo, pois “permite aos refugiados compreenderem a nova realidade em que se encontram, além de viabilizar a expressão de sua cultura e de suas necessidades mais urgentes”.
Giovanna Miron pontua que, mais do que a gramática, projeto ensina os refugiados a sobreviverem às situações cotidianas no novo País. |
Giovanna Miron Fernandes de Moura, que atuou como professora da turma básica e também foi responsável pelas coordenações pedagógica e geral do Nossa Casa, destaca que o conhecimento do idioma local abarca demandas de indivíduos em situação de urgência que precisam sobreviver em um novo país. “Por isso, não nos concentramos na forma gramatical, mas no conteúdo suficiente para a realização de atividades cotidianas, que os habilite a, por exemplo, ir a uma feira fazer compras” — esclarece.
A coordenadora conta que sempre insistiu na ideia de que o projeto deveria contemplar a socialização de pessoas refugiadas no país. “Vejo como espaço raro na sociedade, no qual brasileiros e pessoas de inúmeros países dialogam e tentam se entender.” Giovanna lembra que o Nossa Casa também ajuda os solicitantes de refúgio a obterem aprovação de seus pedidos de reconhecimento no Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE) e, quando é o caso, de naturalização, já que o certificado da UFABC atende às exigências da Polícia Federal e do Ministério da Justiça.
Fazer a diferença
A egressa do curso de Relações Internacionais da UFABC, Camila Nascimento Silva, criadora e coordenadora geral do Nossa Casa, descreve da seguinte forma a idealização do projeto: “Tudo nasceu da cabeça sonhadora de uma adolescente de 17 anos, empolgada com o ingresso na universidade pública e com vontade de ‘fazer a diferença’”.
Ela conta que, durante atividades de uma pesquisa sobre a socialização dos árabes e haitianos no Brasil, entrevistou um imigrante na Mesquita Abu Baker Assadik em São Bernardo. Depois de explicar a ele que o estudo poderia ser útil em políticas públicas, o homem se virou para ela e disse: “Já conversei com outros pesquisadores e vocês sempre vêm com a mesma história, porém eu continuo sem emprego, sem falar português direito, sem perspectivas. Eu também sou pesquisador e sei que essa entrevista vai te ajudar, mas não a mim.” “Foi um tapa na cara” — recorda Camila.
Camila Nascimento uniu os sonhos e 'perrengues' do início de carreira como pesquisadora para dar o 'pontapé inicial' para construção do Nossa Casa* |
Nesse período, ela conheceu Júlia Cristina de Sousa Berruezo, que atuou em projeto de acolhimento no Paraná (Hospitalidade de Curitiba). O compartilhamento de conhecimentos motivou o grupo GEDHRI a levar adiante o projeto de criação do curso na UFABC. Com o apoio da Cátedra e a aprovação da proposta como projeto de Extensão, as aulas se tornaram realidade em 2018.
O formulário inaugural de inscrição foi ativado com pouca expectativa de retorno — esperavam cinco interessados na perspectiva mais otimista. No dia seguinte à abertura da captação, havia 80 inscrições, que chegaram a 118 ao final do prazo (todas foram aceitas para matrícula). Em 2023, o curso passou a integrar o Núcleo Educacional de Tecnologias e Línguas (NETEL) da UFABC, atendendo 80 pessoas em quatro turmas.
Toda a família
O Relatório “Refúgio em Números” contabiliza, em 2021, a concessão de 3.086 reconhecimentos de solicitações da condição de pessoa refugiada. Desse total, cerca de 50% correspondem a crianças dos 5 aos 14 anos, 18,3% à faixa etária de 15 a 24 e 14,1% à faixa etária de 25 a 39 anos. Esses números sugerem que o Brasil tem absorvido famílias completas, formadas por integrantes com necessidades distintas para um acolhimento apropriado.
O documento afirma que “a maior participação de mulheres, crianças e adolescentes nestes grupos populacionais demonstra a necessidade de reavaliar políticas públicas, inclusive no que tange aos procedimentos de gestão da política migratória, de modo a garantir acesso amplo à informação e aos instrumentos de proteção social básica”.
Mohamad destaca aprendizado com professora experiente em ensino de português para estrangeiros |
Natural de Aleppo (Síria), o engenheiro de computação e designer gráfico Mohamad Sabouni chegou ao Brasil em 2014 e, desde então, vive em Santo André. Mesmo com fluência em inglês, ele percebeu que seria indispensável adquirir conhecimentos da língua portuguesa para conseguir trabalho e conduzir situações cotidianas. “Lembro-me que no começo eu gostava muito de ir às lojas de roupas nos shoppings (suas duas malas haviam sido roubadas na viagem ao Brasil). Começava a ver alguma peça e me perguntavam: ‘precisa de ajuda?’. Respondia ‘não, obrigado’, era o que eu sabia falar. Na verdade, queria perguntar sobre tamanhos, provar, mas não conseguia me comunicar.”
Acolhimento familiar foi essencial para o interesse e permanência de Souad no curso |
Mohamad iniciou os estudos de português pelo computador, mas achou os métodos repetitivos e chatos e tentou também em escolas de idiomas antes de chegar à UFABC. Ele considera o Nossa Casa muito importante em seu aprendizado. “Conheci a gramática e muitas coisas novas com uma professora profissional e com experiência em ensino de português para estrangeiros”. Hoje, Mohamad é gerente de marketing e tradutor oficial da Mesquita Brasil em São Paulo.
Souad Abdelfattah Dokliga veio do Egito com a família para o Brasil em 2019 e, no mesmo ano, participou, grávida, da turma iniciante do Nossa Casa. Em 2022, ela ingressou no nível intermediário, passando a contar com a companhia do filho (de dois para três anos de idade) e diz se lembrar com muito carinho do curso na UFABC, especialmente da dedicação e paciência das professoras. Souad atuava como jornalista e professora universitária na terra natal e pretende retomar a carreira de profissional da educação no Brasil: “Conseguir me comunicar é um passo fundamental para realizar esse sonho”.
A jornalista e docente egípcia ressalta que a frequência no curso de português dependeu de uma atividade paralela ao curso. “Meu filho simplesmente amava participar das atividades do "Nossa Casinha". Ele acordava todos os sábados pedindo para eu ir ao curso, pois sabia que iria junto. Ele ama muito esse período, até hoje”.
Nossa Casinha se tornou um local em que as crianças refugiadas podiam recuperar sua infância
Ser criança
No primeiro dia de aula, em 2018, voluntários aguardavam a chegada dos estudantes estrangeiros por transporte fretado. Por volta das 10 horas da manhã daquele sábado, além dos alunos, desembarcaram do ônibus mães com carrinhos de bebê, idosos e crianças de todas as idades em correria. Camila descreve essa cena para relatar um instante de “pânico”, contido pela ideia da também coordenadora Júlia Serra Martins de se ocupar das crianças como cicerone do Campus São Bernardo.
O grupo de voluntários percebeu que o funcionamento do projeto dependeria da capacidade de receber, além dos matriculados regulares, familiares e agregados. Por iniciativa de Júlia, surgiu o Nossa Casinha, que garantiu a condição para que os pais se concentrassem nas aulas. Em 2019, esse trabalho envolvia o uso de cinco salas preparadas para receber crianças de zero a 12 anos de idade. Cada um desses espaços focava em atividades específicas por faixa etária — os ambientes chegaram a receber 120 crianças.
Para Camila, muito mais do que um espaço para recreação, o Nossa Casinha se tornou um local em que as crianças refugiadas podiam recuperar sua infância. Ela explica que quando as famílias chegam ao Brasil, são os mais jovens que, em duas ou três semanas, começam a entender um pouco o português e acabam assumindo algumas responsabilidades. “Muitas vezes, as crianças é que pagam contas, escolhem ítens no mercado ou orientam os pais sobre a localização de produtos. O Nossa Casinha resgatava o exercício da infância e ensinava coisas simples da vida e da natureza.” — ressalta Camila.
Em 2022, o trabalho com as crianças se transformou no livro “Nossa Casinha. Português como língua de acolhimento para crianças” (EdUFABC). Mais sobre o livro em vídeo pelo QR Code. Com produção de Júlia Serra Martins e José Blanes Sala, a obra trata de práticas de acolhimento, demandas e inclusão de crianças que chegam ao Brasil.
Assessoria de Comunicação e Imprensa - Universidade Federal do ABC (ACI UFABC)
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