Criando Buracos Negros em Laboratório
A Revista Eletrônica PesquisABC possui o seguinte registro ISSN: 2675-1461
Murillo Spadin Domingues*, Maurício Richartz**
* Programa de Pós-Graduação em Física – PPGFIS/UFABC
* Centro de Matemática, Computação e Cognição, UFABC
Resumo: Buracos negros são previsões da teoria da relatividade geral de Einstein. Por sua natureza extrema (nem mesmo a luz consegue escapar da sua atração gravitacional), muitos fenômenos associados a buracos negros não podem ser observados na atualidade. Para contornar essa dificuldade, cientistas desenvolveram analogias gravitacionais, experimentos conduzidos em laboratório que são capazes de imitar certos aspectos da física de buracos negros, como a evaporação prevista por Stephen Hawking. Embora essas analogias sejam ferramentas valiosas para a compreensão dos buracos negros, elas apresentam certas limitações. Em particular, as analogias baseadas na hidrodinâmica requerem fluidos sem vorticidade para sua realização. O estudo apresentado aqui analisa o que ocorre quando tentamos criar analogias em fluidos com vorticidade e como elas se diferenciam das analogias usuais. O principal resultado obtido está relacionado a um processo de extração de energia denominado superradiância.
Palavras-chave: buracos negros; análogos gravitacionais; vorticidade; mecânica dos fluidos.
Abstract: Black holes are predictions of Einstein's general theory of relativity. Due to their extreme nature (not even light can escape their gravitational pull) many phenomena associated with black holes cannot be observed at present. To overcome this difficulty, scientists have developed gravitational analogs, laboratory experiments that are capable of mimicking certain aspects of black hole physics, such as the evaporation predicted by Stephen Hawking. Although these analogs are valuable tools for understanding black holes, they present certain limitations. In particular, analogs based on hydrodynamics require fluids without vorticity for their realization. The study presented here analyzes what happens when we attempt to create analogs in fluids with vorticity and how they differ from the usual analogs. The main result obtained is related to a process of energy extraction called superradiance.
Keywords: black holes; gravitational analogs; vorticity; fluid mechanics
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Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo. (ORCID ID 0000-0001-5190-469X)
A Relatividade Geral é a teoria que descreve efeitos da gravitação, incluindo o movimento de planetas e estrelas, através da geometria. Espaço e tempo são unificados nesta teoria, constituindo um objeto chamado espaço-tempo. Na ausência da gravidade, o espaço-tempo tem uma geometria plana. Por outro lado, quando a gravidade está presente, a geometria do espaço-tempo não é plana, podendo ser cilíndrica, esférica ou ter alguma forma não-convencional. Aliás, quanto mais intensa for a gravidade, maior será a curvatura do espaço-tempo. A teoria da Relatividade Geral foi desenvolvida por Albert Einstein no início do século XX para explicar a gravidade e conseguiu descrever observações astronômicas, como o movimento do planeta Mercúrio, que a teoria de Newton não conseguia explicar. A Relatividade Geral gerou (e continua gerando) descobertas e avanços significativos para a ciência. Um exemplo notável, que contou com observações realizadas no Brasil durante um eclipse solar em 1919, foi a comprovação do desvio de raios de luz ao passarem próximos ao Sol, validando previsões de Einstein e consolidando a teoria [1].
Outra descoberta importante da Relatividade Geral é a existência de buracos negros no espaço. Buracos negros são objetos extraordinariamente densos, como se a massa de uma grande montanha fosse colocada dentro de uma formiga. Devido a sua gravidade intensa, buracos negros têm a capacidade de aprisionar qualquer tipo de matéria, e até mesmo a luz! Por este motivo, a ideia de extrair energia de um buraco negro pode parecer absurda. Mesmo assim, essa possibilidade foi explorada em uma pesquisa que envolveu a UFABC [2]. O aspecto mais inusitado dessa pesquisa é o local onde ela ocorre: uma banheira de água!
Para entender como é possível extrair energia de um buraco negro, podemos fazer uma comparação com a energia gerada por estrelas. Nelas, uma grande quantidade de gases é comprimida pela gravidade, provocando colisões violentas entre átomos. Essas colisões fazem com que os átomos se combinem (processo chamado de fusão nuclear), formando novos elementos e liberando energia na forma de luz. É assim que o Sol produz energia. No interior de buracos negros, por outro lado, não ocorrem reações nucleares. No entanto, a rotação é tão intensa que provoca o movimento da matéria em seu entorno. Isso faz com que objetos próximos sejam acelerados e a velocidade de rotação do buraco negro seja reduzida. Na prática, isso resulta na transferência de energia do buraco negro para o seu entorno. A superradiância [3] é o nome dado a este fenômeno quando a energia do buraco negro é transferida para ondas (como a luz, por exemplo). Curiosamente, a superradiância não é exclusiva dos buracos negros. Ela pode ocorrer também, por exemplo, quando a luz é refletida por um cilindro metálico ou quando ondas sonoras interagem com um fluido que escoa em uma banheira de água. Essa observação é a base dos estudos feitos em laboratório.
Em 1981, William Unruh percebeu que a propagação de ondas em um fluido, como a água é similar ao comportamento de ondas ao redor de um buraco negro [4]. Ele mostrou que a equação que descreve a propagação de alguns tipos de onda sob a influência da gravidade de um buraco negro é a mesma que descreve as ondas que se propagam na superfície da água. Assim, o fluxo de água em uma banheira é uma analogia gravitacional, na qual a velocidade do escoamento representa a curvatura do espaço-tempo na Relatividade Geral. A banheira pode ser projetada de maneira que em alguma região a água escoa mais rapidamente que as ondas. Quando isso acontece, as ondas não são capazes de passar da região de escoamento mais rápido para a de escoamento mais lento. Surge, assim, uma região da banheira que aprisiona as ondas de água de modo similar ao que ocorre com a luz dentro de um buraco negro. Por este motivo, configurações deste tipo são chamadas de buracos negros análogos. A utilidade prática destas analogias torna-se evidente quando reconhecemos que experimentos são, no geral, muito mais simples de serem realizados em uma banheira do que no entorno de um buraco negro.
Estudos realizados em analogias gravitacionais conseguiram mostrar no laboratório a existência de fenômenos físicos que haviam sido previstos teoricamente, mas nunca observados. O exemplo mais famoso disso é a uma das descobertas do físico britânico Stephen Hawking [5]: um processo de evaporação de buracos negros e que hoje leva seu nome. A radiação Hawking emitida pelos buracos negros existentes no espaço é extremamente fraca, o que a torna indetectável. No entanto, no laboratório é possível a observação do efeito Hawking em buracos negros análogos [6,7]. Outros fenômenos, como a superradiância e o amortecimento de buracos negros, também foram observados em analogias gravitacionais, com a colaboração da UFABC [2,8].
Para que a analogia gravitacional seja válida é necessário que o escoamento do fluido não possua vorticidade, uma propriedade fundamental dos fluidos [9]. De forma simples, a vorticidade pode ser entendida como a tendência de uma região do fluido girar em torno de si própria. Imagine, por exemplo, uma folha de árvore sobre a superfície de um fluido. Em uma região com vorticidade, a folha gira em torno do próprio eixo, como mostrado na Fig. 1. A vorticidade está presente também quando um avião atravessa uma região de turbulência ao longo de um voo ou quando um tornado se forma na atmosfera. Veja em [10,11] como criar um vórtice em casa usando materiais simples.
Figura 1: A imagem à esquerda ilustra um escoamento sem vorticidade, enquanto a imagem à direita representa um escoamento com vorticidade. Perceba que o efeito da vorticidade faz a folha girar em torno do próprio eixo. Fonte: imagem adaptada de [12].
Sabendo que a vorticidade é uma característica comum e essencial no estudo da dinâmica dos fluidos, é natural nos questionarmos como ela afeta as analogias gravitacionais. Em particular, qual é o efeito da vorticidade de um fluido na evaporação de um buraco negro análogo? Qual é seu efeito na superradiância de buracos negros análogos? A pesquisa desenvolvida na UFABC [13] busca, de forma pioneira, responder a essas perguntas. A maioria absoluta dos estudos sobre analogias gravitacionais até hoje tem se concentrado em escoamentos sem vorticidade. O principal desafio ao considerar analogias com vorticidade é que novos parâmetros precisam ser introduzidos para descrever as ondas neste tipo de escoamento, tornando as equações do sistema mais complexas.
O estudo teórico conduzido na UFABC analisou a ocorrência de superradiância em um tipo de vórtice proposto pelo físico escocês William Rankine [9]. Esse modelo considera uma banheira redonda e divide o escoamento do fluido em duas regiões distintas. Na região central da banheira, interior a uma circunferência de raio r0, há um escoamento com vorticidade constante, enquanto na região periférica, exterior à circunferência de raio r0, não existe vorticidade. A velocidade de escoamento pode ser ajustada de forma que a região central da banheira seja suficientemente veloz para aprisionar algumas ondas e formar um buraco negro análogo com vorticidade. A Fig. 2 ilustra o tipo de escoamento considerado no trabalho.
Figura 2: À esquerda, uma imagem do vórtice utilizado em um experimento com um buraco negro análogo. À direita, um gráfico representando a velocidade v do fluido considerado no trabalho. O círculo ilustra o raio r0 do núcleo de vorticidade. A curva roxa representa a velocidade de rotação v do fluido em função da distância r do centro da banheira. Fonte: imagem adaptada de [14] e [15].
A análise matemática do trabalho consistiu em enviar uma onda de frequência w em direção ao vórtice e calcular a energia refletida pelo buraco negro análogo. A razão entre a energia refletida e a energia incidente é o coeficiente de reflexão R. Em condições normais, o coeficiente de reflexão R varia entre 0% e 100%, pois uma parte da onda é absorvida pelo buraco negro e a outra é refletida. Quando ocorre superradiância, o valor de R ultrapassa 100%, indicando que a onda refletida carrega toda a energia incidente e também energia de rotação extraída do buraco negro. A Fig. 3 ilustra os resultados, apresentando R em função da frequência w da onda incidente para vórtices com regiões de vorticidade de tamanhos diferentes. Os gráficos apontam a ocorrência de superradiância em baixas frequências. A principal conclusão do trabalho é: mesmo na presença de vorticidade, é possível extrair energia de um buraco negro análogo. Esse resultado abre novas perspectivas de pesquisa, tanto teóricas quanto experimentais, na área de analogias gravitacionais.
Figura 3: Coeficiente de reflexão R em função da frequência w da onda incidente. A frequência é medida em Hertz (ou seja, oscilações por segundo). As curvas descrevem escoamentos com diferentes valores do raio r0, que corresponde ao tamanho da região com vorticidade. A superradiância ocorre quando os valores de R estão acima de 100% [13].
O resultado encontrado é muito interessante, mas vale lembrar que ele se baseia em uma analogia e, portanto, está restrito a todas suas limitações. Em primeiro lugar, como o estudo que realizamos foi teórico, é necessário confirmar as previsões através de experimentos em laboratório. Em segundo lugar, o papel da vorticidade como parte da analogia entre ondas de água e buracos negros não é totalmente entendido – é necessário mais estudos para se encontrar um modelo matemático ainda mais preciso para a analogia. Por fim, como estudamos buracos negros na água, se quisermos estender os resultados para buracos negros no espaço precisamos fazer novos estudos. Apesar destas limitações, o estudo das analogias gravitacionais sugere novos caminhos para se estudar buracos negros reais. Será que, no futuro, tecnologias poderiam ser desenvolvidas para explorar a extração de energia rotacional de buracos negros no espaço por meio da superradiância, oferecendo uma alternativa para atender parte das necessidades energéticas da humanidade?
Agradecimentos
Agradecemos a João Henrique Santos de Souza pelo auxílio na edição das imagens. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) - Bolsa 15991/2023-2, e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) - Auxílio 2022/08335-0.
Referências
1. Crispino, L. C. & Lima, M. C. Expedição Norte-Americana e iconografia inédita de Sobral em 1919. Revista Brasileira de Ensino de Física 40, e1601 (2018). https://doi.org/10.1590/1806-9126-RBEF-2017-0092
2. Torres, T., et al. Rotational superradiant scattering in a vortex flow. Nature Physics 13, 833-836 (2017). https://doi.org/10.48550/arXiv.1612.06180
3. Brito, R., Cardoso, V. & Pani, P. Superradiance: New Frontiers in Black Hole Physics. Lecture notes in physics 906, 1-281 (2020). https://doi.org/10.48550/arXiv.1501.06570
4. Unruh, W. G. Experimental black-hole evaporation? Phys. Rev. Lett. 46, 1351 (1981). https://doi.org/10.1103/PhysRevLett.46.1351
5. Radiação Hawking. WIKIPÉDIA: a enciclopédia livre. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Radiação_Hawking (Acesso em: 14 de Novembro de 2024).
6. Weinfurtner, S., et al. Measurement of stimulated Hawking emission in an analogue system. Phys. Rev. Lett. 106, 021302 (2011). https://doi.org/10.48550/arXiv.1008.1911
7. Muñoz de Nova, J. R., Golubkov, K., Kolobov, V. I. & Steinhauer, J. Observation of thermal hawking radiation and its temperature in an analogue black hole. Nature 569, 688–691 (2019). https://doi.org/10.48550/arXiv.1809.00913
8. Torres, T., Patrick, S., Richartz, M. & Weinfurtner, S. Quasinormal mode oscillations in an analogue black hole experiment. Phys. Rev. Lett. 125, 011301 (2020). https://doi.org/10.48550/arXiv.1811.07858
9. Vorticidade. WIKIPÉDIA: a enciclopédia livre. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Vorticidade (Acesso em: 14 de Novembro de 2024).
10. Providença, C. Um Tornado Numa Garrafa. Gazeta de Física 40, 56-57 (2019). Disponível em: https://www.spf.pt/magazines/GFIS/387/article/1074/pdf (Acesso em: 14 de Novembro de 2024).
11. Tornado hipnotizante dentro da garrafa. YouTube. Disponível em: https://www.youtube.com/shorts/qPR-4W6dm30 (Acesso em: 14 de Novembro de 2024).
12. Illustration_of_vorticity.svg. WIKIPÉDIA: a enciclopédia livre. Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Illustration_of_vorticity.svg (Acesso em: 14 de Novembro de 2024).
13. Spadin, M. D. (2023). Gravitação análoga e vorticidade. Dissertação (Mestrado), Universidade Federal do ABC, Programa de Pós-Graduação em Física.
14. Patrick, S., Coutant, A., Richartz, M. & Weinfurtner, S. Black Hole quasibound states from a draining bathtub vortex flow. Phys. Rev. Lett. 121, 061101 (2018). https://doi.org/10.48550/arXiv.1801.08473
15. RankineVortex.svg. WIKIPÉDIA: a enciclopédia livre. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:RankineVortex.svg (Acesso em: 14 de Novembro de 2024).
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