Você Consegue Estimar a Duração de 5 Segundos? O Desafio de Ensinar Ratos a Codificar a Passagem do Tempo
A Revista Eletrônica PesquisABC possui o seguinte registro ISSN: 2675-1461
Alice Fernanda Oliveira Mercado *, Aila Silveira Câmara *, Marcelo Bussotti Reyes *
* Laboratório de Eletrofisiologia, Centro de matemática, Computação e Cognição, Universidade Federal do ABC, São Bernardo do Campo-SP
Resumo: A percepção temporal é uma habilidade fundamental para a sobrevivência, mas os mecanismos pelos quais o cérebro codifica intervalos temporais ainda são pouco compreendidos. O objetivo do projeto foi entender como os animais aprendem a medir o tempo e quais estratégias de treinamento são mais eficazes nesse processo. Nosso estudo investigou essa questão utilizando ratos em uma tarefa chamada Reforço Diferencial por Duração de Resposta (DRRD), adaptada para intervalos superiores a 5 segundos.
Os resultados mostraram que os ratos adaptam seus comportamentos, aumentando gradualmente a duração das respostas para alcançar o tempo necessário e receber recompensas. Isso nos ajuda a entender como o cérebro processa o tempo e abre portas para futuras pesquisas, como o uso de medicamentos ou técnicas que observam a atividade do cérebro em tempo real. Essas descobertas podem contribuir para compreender condições que afetam a percepção do tempo, como dificuldades de atenção ou doenças que alteram o controle motor, incluindo Parkinson.
Palavras-chave: Percepção temporal; ratos; DRRD.
Abstract: Temporal perception is a fundamental skill for survival, yet the mechanisms by which the brain encodes time intervals remain poorly understood.
The aim of this project was to understand how animals learn to measure time and which training strategies are most effective in this process. Our study investigated this question using rats in a task called Differential Reinforcement of Response Duration (DRRD), adapted for intervals exceeding 5 seconds.
The results showed that the rats adapted their behavior, gradually increasing the duration of their responses to achieve the required time and receive rewards. This helps us understand how the brain processes time and opens avenues for future research, such as the use of medications or techniques that observe brain activity in real time. These findings may contribute to understanding conditions that affect time perception, such as attention deficits or diseases that alter motor control, including Parkinson's disease.
Keywords: Temporal perception; rats; DRRD.
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ORCID ID do prof. Dr. Marcelo Reyes: https://orcid.org/0000-0001-7811-7696
O que os ratos podem nos ensinar sobre o tempo
Imagine que você recebe a tarefa de levantar a mão daqui a 5 segundos, sem poder contar mentalmente ou usar um cronômetro. Você simplesmente passaria um tempo “esperando”, tentando acertar o momento exato. Humanos e outros animais conseguem realizar tarefas como essa ou similares — que exigem uma estimativa do tempo decorrido —, com certa precisão. Mas como o cérebro faz isso? Que mecanismos neurais estão envolvidos para que se consiga planejar uma ação a ser executada num futuro próximo, sem nenhuma referência externa? Nossa pesquisa tem como objetivo entender esse processo de codificação temporal, utilizando ratos em uma tarefa chamada “Differential Reinforcement of Response Duration” (DRRD), ou Reforço Diferencial por Duração de Resposta. Nesta tarefa, os animais devem simplesmente manter uma alavanca pressionada por um tempo mínimo para ganhar uma recompensa. Com esse procedimento, conseguimos investigar como diferentes regiões cerebrais colaboram para realizar tarefas de estimação de intervalos temporais.
Nosso estudo segue a linha de investigação iniciada por pesquisas anteriores realizadas no laboratório de Eletrofisiologia do grupo de Timing da Universidade Federal do ABC (UFABC). Anteriormente, havíamos estudado a atividade neural utilizando a tarefa de DRRD com intervalos de tempo de pouco mais de 1 segundo, dados que revelaram uma migração da codificação temporal entre duas áreas cerebrais relevantes durante o aprendizado de tarefas temporais: do córtex pré-frontal ao núcleo estriado (Figura 1).
Figura 1. Representação do córtex pré-frontal e do núcleo estriado dorsal, destacando as funções mais comumente atribuídas a elas, na migração da codificação temporal durante o aprendizado de tarefas temporais. A seta indica a direção da migração da codificação do tempo durante a aprendizagem. Inicialmente o córtex pré-frontal é necessário para que o rato aprenda a pressionar a alavanca por um tempo mínimo. Ao executar diversas vezes a tarefa, o procedimento vai ficando cada vez mais automatizado, recrutando o estriado dorsal.
Para entender melhor, o córtex pré-frontal é uma região do cérebro associada ao planejamento de ações e ao controle de impulsos. Ele nos ajuda a tomar decisões e a controlar comportamentos, como saber quando esperar o momento certo para agir. Em humanos, lesões no córtex pré-frontal podem levar a mudanças de comportamento e dificuldades de planejamento e organização. Já o núcleo estriado dorsal, mais profundo no cérebro, está relacionado à execução automática de tarefas aprendidas, como se fosse uma 'memória' para ações, que permite realizá-las sem precisar pensar nelas a todo momento.
Essa descoberta foi fundamental para entendermos como diferentes regiões cerebrais se envolvem no processo de controle de ações que duram cerca de 1 segundo. Porém, é sabido na literatura que os mecanismos neurais envolvidos em ações que perduram um segundo ou menos são distintos dos envolvidos com ações mais longas (da ordem de vários segundos). Tais evidências sugerem que haveria uma mudança na forma do cérebro controlar as ações caso os ratos tivessem que sustentar a resposta por vários segundos na mesma tarefa de DRRD. Nosso trabalho expande esse conhecimento ao adaptar a tarefa de DRRD para intervalos temporais mais longos, superiores a 5 segundos. Ao entender como o cérebro dos ratos processa o tempo nessas escalas, podemos explorar novas dinâmicas no aprendizado e na codificação temporal, avançando o conhecimento sobre como nossos próprios cérebros percebem e organizam o tempo, inclusive em diferentes escalas.
Passo a passo: a construção do nosso experimento
Nosso experimento foi projetado para adaptar a tarefa de DRRD, visando entender como os ratos podem aprender a medir intervalos de tempo mais longos, como os 5 segundos. Para isso, utilizamos 24 ratos machos da linhagem Wistar, mantidos no biotério da UFABC em uma dieta controlada para que ficassem motivados a participar. Eles foram colocados em uma caixa com uma alavanca, na qual deveriam pressioná-la para ganhar uma bolinha de açúcar como recompensa.
O experimento foi dividido em duas etapas. Numa etapa de pré-treinamento, os ratos aprenderam a pressionar a alavanca, recebendo uma recompensa a cada pressão, logo após soltá-la, independentemente de quanto tempo a manteve pressionada. Após aprenderem essa parte, passaram para a Fase DRRD, onde precisavam manter a alavanca pressionada por um tempo mínimo para ganhar a recompensa.
O tempo necessário para pressionar a alavanca (chamado de critério) aumentava aos poucos de acordo com o desempenho de cada rato e, a cada nova sessão, os ratos precisavam esperar mais para conseguir a recompensa. Testamos diversas maneiras de aumentar este critério, processo que nos possibilitou investigar como os ratos se adaptam aos diferentes intervalos temporais.
Figura 2. Esquema experimental da tarefa de Reforço Diferencial por Duração de Resposta (DRRD). Esq.) Esquema mostrando a caixa de condicionamento onde os ratos são treinados. Dir.) Delineamento experimental representando uma tentativa recompensada (acima) e uma não recompensada (abaixo): o rato pressiona uma alavanca por um tempo determinado e, em seguida, a solta. Caso o tempo pressionado seja maior que o tempo mínimo, uma recompensa é fornecida, mas se for menor que o mínimo necessário, ele não recebe recompensa.
Será que acertamos? O que descobrimos até agora
Os resultados até o momento mostram que os ratos conseguiram aprender a estimar intervalos de tempo mais longos, como esperado. Inicialmente, eles pressionavam a alavanca por períodos curtos, mas à medida que o treinamento avançava, a duração das pressões aumentava, indicando que os ratos aprendiam a pressionar por mais tempo para ganhar a recompensa. Esse aprendizado foi gradual e evidente ao longo das sessões de treinamento, quando os ratos começaram a adaptar seu comportamento (Figura 3).
Figura 3. A) Dados de um único rato em uma sessão de treinamento, mostrando a duração de cada uma das respostas a cada tentativa. Cada ponto representa uma pressão na alavanca. A duração média das respostas (variável de interesse) é mostrada como uma linha vertical no gráfico. B) Evolução da duração média das respostas para dois grupos experimentais, o grupo linear e o grupo onde o critério aumentava em 40%. As áreas em torno definem o intervalo de confiança de 95% da média.
Apesar dos animais aprenderem a pressionar a alavanca por mais de 5 segundos, o treinamento levava mais de 10 dias. Então, nos aprofundamos sobre a seguinte questão: qual seria a maneira de treinar os ratos para que a velocidade de aprendizagem fosse máxima, diminuindo assim o número de dias? Tipicamente os animais avançavam no treinamento aumentando o critério em meio segundo (500 milissegundos) a cada três respostas corretas. Mas, se aumentássemos esse “degrau” no critério, colocando um tempo superior a 500 ms, os animais aprenderiam mais rápido? E se aumentássemos um valor percentual no critério, ao invés de um valor fixo?
Ao comparar os diferentes métodos de treinamento, vimos que alguns grupos aprenderam mais rápido do que outros. Por exemplo, aquele que teve um aumento fixo de tempo, iniciando com 500 milissegundos e sofrendo um acréscimo de mais 500 milissegundos a cada três respostas corretas seguidas, mostrou um progresso mais rápido, com um número maior de respostas acima de 5 segundos. Já quando aumentamos o critério em 40% a cada três respostas corretas seguidas, os animais inicialmente evoluíam mais rápido, porém rapidamente o critério ficava muito longo, fazendo com que o rato repetidas vezes soltasse a alavanca cedo demais, levando-o a parar de pressioná-la. Ou seja, o “degrau de aprendizagem” era alto demais, fazendo com que o animal desistisse da tarefa. Com isso, mostramos que alguns métodos de avanço do critério são mais eficazes para a aprendizagem da estimação temporal.
Esses achados iniciais são promissores, pois indicam que nossa abordagem experimental está ajudando a entender como os ratos aprendem a estimar o tempo e mostram a evolução do seu comportamento com o aumento das pressões na alavanca ao longo do treinamento.
Do laboratório para a vida real: por que o tempo importa?
Nosso estudo visa construir uma base metodológica e comportamental sólida para o estudo da estimação temporal em uma tarefa ainda pouco explorada. Esperamos que tal base contribua futuramente no entendimento de como o cérebro estima e organiza o tempo, algo essencial para tarefas cotidianas, como tomar decisões rápidas ou planejar o futuro. Além disso, distúrbios como TDAH e Parkinson alteram a nossa percepção do tempo, mostrando uma relação íntima entre os mecanismos neurais subjacentes à estimação temporal e certas patologias. Tal relação nos dá a esperança que estes estudos possam contribuir para uma melhor compreensão destas patologias.
Os desafios e avanços no estudo da percepção do tempo
Nossos resultados trouxeram novos avanços ao mostrar que os ratos conseguem sustentar respostas por intervalos de tempo mais longos, algo que poucos estudos haviam explorado antes. Esses achados abrem novas possibilidades para entender como aprendemos a medir o tempo e como diferentes métodos de treinamento ajudam nesse processo.
Futuramente, planejamos realizar dois tipos de intervenções: farmacológicas e eletrofisiológicas. As primeiras envolvem o uso de medicamentos que alteram temporariamente a atividade de certas áreas do cérebro, como o córtex pré-frontal (responsável pelo planejamento e controle) e o núcleo estriado (que ajuda a executar ações aprendidas). Isso nos permitirá descobrir quais partes do cérebro são essenciais para produzir respostas mais longas e se diferentes áreas (como o córtex pré-frontal) seriam recrutadas à medida que o critério aumenta.
Já as intervenções eletrofisiológicas nos permitirão observar o cérebro em ação, registrando os sinais elétricos dos neurônios enquanto os ratos realizam a tarefa, como feito em estudos anteriores do nosso laboratório. Com isso, poderemos entender melhor como o cérebro responde durante o aprendizado e como organiza a percepção do tempo.
Um passo mais perto de entender o tempo no cérebro
Nosso estudo mostrou que os ratos podem aprender a medir intervalos de tempo mais longos, superando 5 segundos, o que foi um passo importante para entender como o cérebro percebe e organiza o tempo. Essa habilidade está presente no nosso dia a dia, seja para tomar decisões rápidas, planejar ações ou até mesmo controlar movimentos. Esses resultados abrirão caminhos para novos estudos que vão explorar mais a fundo como o cérebro realiza essa tarefa. Pretendemos usar fármacos que alteram a atividade cerebral e técnicas para observar o cérebro em ação enquanto os ratos realizam a tarefa. Isso poderá nos ajudar a descobrir quais áreas do cérebro são mais importantes para medir o tempo.
Além de ampliar o conhecimento sobre o funcionamento do cérebro em animais, esses avanços têm grande potencial para nos ajudar a entender condições que afetam a percepção do tempo em humanos, como dificuldades de atenção ou doenças que prejudicam o controle motor, como o Parkinson.
De ratos a humanos: quem fez parte deste projeto?
Como um dos colaboradores do nosso laboratório um dia disse: “It takes a lab.” Este projeto não seria possível sem o trabalho de nossas colegas Beatriz Queiroz e Gabriela Silene. Agradecemos também aos integrantes do laboratório de Eletrofisiologia e ao Grupo de Timing da UFABC, cujos comentários e contribuições foram essenciais para o desenvolvimento deste trabalho. Este projeto contou com o apoio e financiamento da Universidade Federal do ABC (UFABC), do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
Referências
1. Buhusi, C. V. et al. Inactivation of the medial-prefrontal cortex impairs interval timing precision, but not timing accuracy or scalar timing in a peak-interval procedure in rats. Front. Integr. Neurosci. 12, 20 (2018).
2. Reyes, M. B. et al. Rats can learn a temporal task in a single session. Behav. Process. 170, 103986 (2020).
3. Tunes, G. C. et al. Time encoding migrates from prefrontal cortex to dorsal striatum during learning of a self-timed response duration task. eLife 11, e65495 (2022).
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