Políticas de enfrentamento à violência contra as mulheres em municípios de pequeno porte
Ana Carolina Almeida Santos Nunes, egressa do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da UFABC, pesquisou, durante o mestrado, a respeito da implementação de políticas públicas de enfrentamento à violência contra as mulheres em municípios considerados de pequeno porte.
Um de seus principais objetivos era analisar diferentes arranjos das referidas políticas, induzidas pelo governo federal, em municípios com menos de 50 mil habitantes, e compreender de que forma os desenhos institucionais são adaptados às realidades locais. Para tanto, optou por analisar os casos de dois municípios, situados nas regiões nordeste e sul – Afogados da Ingazeira (Pernambuco) e Palmeira das Missões (Rio Grande do Sul) –, partindo das premissas estabelecidas pela Lei Maria da Penha e pelo Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência contra as Mulheres – exemplos de legislações cujo cumprimento exige grande articulação entre governos municipais, estaduais e federal.
De acordo com a pesquisadora, dentre os resultados observados, demonstrou-se a complexidade dos contextos de implementação das políticas públicas de gênero em municípios pequenos – o que ainda é pouco explorado pelas análises acadêmicas. Segundo ela, os casos analisados indicam que os Organismos de Políticas para Mulheres (OPM) municipais podem promover a integração horizontal dessas políticas, mas que sua capacidade depende da atuação dos OPMs estaduais. Observou-se, ainda, que o atendimento às mulheres depende muito dos equipamentos de assistência social; que a adaptação das políticas públicas às dinâmicas territoriais está relacionada à participação da sociedade civil; e que o Poder Judiciário pode impulsionar ações do Poder Executivo e amparar mulheres que não são devidamente atendidas pelas prefeituras.
Por fim, a egressa afirma que, com seu trabalho, “espera-se aprofundar o debate sobre a construção de políticas públicas que cheguem a todas as mulheres brasileiras, e não apenas àquelas que vivem em contextos urbanos”.
Além de mestra em Políticas Públicas pela UFABC, Ana Carolina é doutora em Administração Pública e Governo pela FGV, e graduada em Jornalismo pela USP. Atualmente, pesquisa sobre burocracia e políticas públicas, trabalha com consultoria e advocacy e é ativista por políticas públicas para a mobilidade ativa e o enfrentamento à violência de gênero em espaços públicos.
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Dados | Egressa
Nome completo
Ana Carolina Almeida Santos Nunes
Formação acadêmica (cursos e instituições)
∙ Doutorado em Administração Pública e Governo | Fundação Getúlio Vargas;
∙ Mestrado em Políticas Públicas | Universidade Federal do ABC;
∙ Bacharelado em Jornalismo | Universidade de São Paulo.
Profissão / experiência profissional
Atuo com pesquisas sobre burocracia e implementação de políticas públicas, além de trabalhar com consultoria e advocacy. Também sou ativista por políticas públicas para a mobilidade ativa e o enfrentamento à violência de gênero em espaços públicos.
Programa de pós-graduação e curso (mestrado ou doutorado) concluído na UFABC
Mestrado em Políticas Públicas.
Como sua trajetória neste curso de pós-graduação na UFABC contribuiu para sua formação?
A UFABC é uma universidade que leva a sério a interdisciplinaridade e isso foi essencial para enriquecer minha formação teórica. Os professores do curso, por sua vez, dedicam-se ao máximo para nos introduzir no universo da pesquisa, ao mesmo tempo em que mostram respeito por nossas trajetórias em diversos campos do saber. Também foi muito recompensador, para mim, atuar como assistente docente em disciplinas da graduação – o corpo discente da UFABC é bastante diverso e dedicado, o que se refletia em discussões muito interessantes em sala de aula.
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Dados | Dissertação
Título
Análise dos arranjos de implementação de políticas públicas de enfrentamento à violência contra mulheres em municípios de pequeno porte
Data da defesa
19 de junho de 2017
Nome da orientadora
Profa. Dra. Gabriela Spanghero Lotta
Linha de pesquisa
Análise de Políticas Públicas
Link para a dissertação
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Questões | Pesquisa
Qual o tema da sua pesquisa e por que o escolheu?
O tema da minha pesquisa foi a implementação de políticas públicas induzidas pelo governo federal em municípios, com foco naqueles considerados de pequeno porte (com menos de 50 mil habitantes). O caso analisado foi o Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, que exige grande articulação entre governos municipais, estaduais e federal. Eu escolhi esse caso porque já era engajada pessoalmente na temática, enquanto mulher e ativista feminista. Além disso, quis investigar a realidade dos pequenos municípios também por um envolvimento pessoal, visto que a família da minha mãe vive em uma cidade de 11 mil habitantes no interior da Bahia. Gostaria de entender como essas políticas pensadas nacionalmente chegam "à ponta".
Quais eram seus objetivos (gerais e específicos)?
O objetivo principal deste trabalho era analisar diferentes arranjos de implementação de políticas públicas de enfrentamento à violência contra as mulheres em municípios de pequeno porte, compreendendo de que forma os desenhos institucionais são adaptados às realidades locais.
Já os objetivos específicos eram:
- Compreender como as premissas de transversalidade, intersetorialidade e capilaridade do Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência contra as Mulheres traduzem-se em arranjos de implementação no âmbito dos municípios estudados;
- Avaliar a intersetorialidade, a subsidiariedade federativa, a relação entre atores estatais e não estatais e o tratamento da dimensão do território na implementação das políticas públicas de enfrentamento à violência contra as mulheres no âmbito dos municípios estudados;
- Identificar inovações nos arranjos de governança e na coprodução de políticas públicas de enfrentamento à violência contra as mulheres.
Como foi sua realização (materiais e métodos, metodologia, corpus etc.)?
A pesquisa de campo foi realizada no ano de 2017, em dois municípios de pequeno porte – um em Pernambuco e outro no Rio Grande do Sul –, além das capitais de cada Estado. Foram entrevistados gestoras e gestores públicos de todas as áreas envolvidas nas políticas públicas de enfrentamento à violência contra as mulheres, em seus respectivos locais de trabalho, além de representantes da sociedade civil e burocratas do nível de rua, totalizando 49 entrevistas semiestruturadas. Os municípios foram escolhidos com base em cinco critérios: (1) ter menos de 50 mil habitantes; (2) ter um Organismo Municipal de Políticas para as Mulheres (OPM); (3) ter um Conselho Municipal dos Direitos da Mulher; (4) ser indicado como referência em implementação de políticas públicas de combate à violência contra as mulheres; e (5) não fazer parte de regiões metropolitanas. Inicialmente, as referências enunciadas pelo critério (4) foram buscadas entre gestoras da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) do governo federal. Diante da dificuldade de obter essas referências, optou-se por direcionar a pesquisa a dois estados que se destacavam, à época, por terem muitos municípios que implementaram políticas públicas para mulheres: Pernambuco e Rio Grande do Sul. As pessoas entrevistadas nas capitais indicaram municípios de referência nos seus estados, o que conduziu a pesquisa à imersão nos municípios indicados. A seleção de entrevistados deu-se por meio da técnica “bola de neve”, partindo das gestoras municipais e estaduais dos OPMs. Em consonância com a proposta de imersão no campo-tema, as conversas informais, os espaços de trabalho e os discursos escritos e não escritos compuseram a observação. Ao longo da pesquisa de campo, foram construídas sequências narrativas sobre a implementação das políticas públicas de enfrentamento à violência contra as mulheres nos dois municípios estudados. A coleta de dados foi conduzida de modo a responder as perguntas de referência para a análise de arranjos institucionais, conforme construído por Lotta e Favareto (2016). Foram consideradas três das quatro dimensões de análise propostas pelos autores: a integração horizontal (articulação intersetorial); a integração vertical (articulação e colaboração entre os diferentes entes federativos); e como é tratada a dimensão territorial. A quarta dimensão da proposta dos autores é a de participação, que, para a presente pesquisa, foi alterada para “modelos de coprodução de políticas públicas”. Essas perguntas podem ser encontradas na ilustração "Dimensões de análise dos arranjos de implementação".
Quais foram os desafios enfrentados?
O primeiro desafio foi encontrar informações atualizadas sobre as políticas públicas de enfrentamento à violência de gênero. O segundo foi encontrar referências sobre municípios de pequeno porte, que são pouco pesquisados e também contam com mais limitações no registro de informações sobre políticas públicas. Foi praticamente impossível coletar informações verificáveis sobre políticas adotadas por gestões anteriores nos municípios estudados, por exemplo. Quando solicitadas a indicar municípios de até 50 mil habitantes que fossem referência na implementação das políticas públicas estudadas, a maior parte das gestoras estaduais entrevistadas referia-se a municípios maiores e de regiões metropolitanas, explicitando a invisibilidade dessa categoria até mesmo entre as gestoras responsáveis por capilarizar as políticas para as mulheres nesses territórios. Essa dificuldade, por si só, aponta para a necessidade de ampliar a atenção sobre esse universo, que, segundo o IBGE, corresponde a 88,24% dos municípios brasileiros, onde residem 32,1% da população (segundo o Censo de 2010).
Quais foram os principais resultados alcançados?
Ambos os casos estudados são de municípios da faixa de 30 mil habitantes, situados a mais de 300 quilômetros da capital de seus estados, cujos OPMs e Conselhos Municipais dos Direitos da Mulher foram instalados há menos de 3 anos e cujos prefeitos foram reeleitos.
As políticas públicas de enfrentamento à violência contra as mulheres por eles implementadas, entretanto, estão em estágios muito distintos.
Na cidade 1 (Pernambuco), o OPM era coordenado por uma gestora com alta capacidade técnica e de articulação, e a agenda de gênero tem apoio dentro da gestão municipal. A sociedade civil participava ativamente na formulação e implementação das políticas públicas e respaldava a atuação da coordenadora do OPM. Os gestores da Prefeitura dispunham de mecanismos de articulação intersetorial e a agenda de políticas públicas de gênero era adaptada às particularidades do território. Por fim, a Secretaria Estadual de Políticas para as Mulheres apoiava o município na elaboração e implementação dessas políticas públicas, com a cooperação do Poder Judiciário.
Já na cidade 2 (Rio Grande do Sul), a implementação de ações de enfrentamento à violência contra as mulheres ficava a cargo de uma rede informal, formada por atores do Poder Judiciário, da Polícia Civil e da burocracia de nível de rua da Assistência Social. A gestora municipal de políticas para as mulheres, por sua vez, tinha pouco conhecimento sobre as ações em curso e não conseguia promover a articulação dos atores envolvidos na temática de gênero. O Conselho Municipal dos Direitos da Mulher e as organizações da sociedade civil ligadas à temática de gênero atuavam pautando o tema na agenda municipal e promovendo atividades pontuais com o apoio da Prefeitura, mas suas funções se misturavam com as da Coordenadoria de Políticas para as Mulheres, que parecia não ter atuação definida. Além disso, o governo estadual apoiava pouco o município na implementação de políticas públicas de gênero.
Os resultados apontam para algumas conclusões, resumidas na ilustração "Reflexões e conclusões". A primeira diz respeito à atuação dos OPMs nos municípios, organismos que se mostram essenciais para coordenar políticas públicas. A trajetória política e as capacidades técnicas das pessoas que assumem a coordenação dos OPMs – que, em municípios pequenos, geralmente trabalham sozinhas – importam tanto quanto a própria existência dessas estruturas. Elas são responsáveis por levar a perspectiva de gênero a todas as atrizes e atores atuantes no território, principalmente aos outros setores do Poder Executivo, além de articular uma rede de enfrentamento à violência contra as mulheres no território. Nesse sentido, as ferramentas de monitoramento e de gestão intersetorial podem fazer a diferença. É preciso formar uma agenda consonante com os princípios da Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres e, nesse sentido, os OPMs dos governos estaduais devem dar subsídios técnicos, acompanhar o trabalho dos municípios e promover a temática de gênero. Isso leva à segunda conclusão: a atuação dos governos estaduais é fundamental para os municípios de pequeno porte, que trabalham com orçamentos curtos e têm menores capacidades institucionais. Eles dependem de “intermediários” para conseguir implementar políticas de âmbito nacional – especialmente quando se trata de uma agenda emergente. Os governos estaduais, além de fazerem a ligação entre os recursos federais e os governos municipais, são os principais responsáveis pela política de segurança pública, eixo fundamental do enfrentamento à violência contra as mulheres. Portanto, ainda que um município disponha de gestoras e gestores comprometidos com a temática e tente implementar essas políticas, o alcance de suas ações é limitado quando o governo estadual não cumpre suas funções.
Ambos os casos não dispunham de equipamentos especializados de atendimento psicossocial à mulher em situação de violência, mas conseguiam fornecer esse serviço por meio dos equipamentos de assistência social. O que remete ao terceiro ponto: a dificuldade dos municípios de pequeno porte manterem equipamentos especializados. Ainda que haja apoio técnico e financiamento para a sua construção, sua manutenção traz custos incompatíveis com a realidade dessas prefeituras. As soluções apontadas são a formação de consórcios ou a “estadualização” da gestão de equipamentos especializados.
Outra questão relacionada é a necessidade de fortalecer a assistência social e vincular o atendimento às mulheres em situação de violência aos programas federais financiados pelo Sistema Único de Assistência Social (SUAS). A participação ativa desse setor na rede de atendimento, por sua vez, só reforça a importância dos mecanismos de gestão intersetorial das políticas públicas no nível municipal.
A quarta conclusão é que a adaptação das políticas públicas às dinâmicas do território está intrinsecamente ligada à participação da sociedade civil na sua produção. Em municípios pequenos, as organizações temáticas da sociedade civil têm força para pautar a agenda local, de forma a conferir legitimidade às políticas públicas de enfrentamento à violência contra as mulheres; e também para estender o alcance dessas políticas. A coprodução com a sociedade civil enriquece a leitura dos gestores públicos locais sobre as demandas específicas do território e da diversidade de mulheres, adaptando as iniciativas e aumentando sua efetividade. Além disso, trata-se de uma agenda recente, na qual as organizações da sociedade civil detêm maior conhecimento e acúmulo histórico que o poder público.
Destaca-se, como última conclusão, que a proatividade do sistema de justiça nos municípios de pequeno porte pode impulsionar ações do Executivo e amparar as mulheres que buscam a ajuda do Estado quando falta atuação da prefeitura. Assim como na relação entre governos municipais e estaduais, quando uma das partes não cumpre totalmente suas funções dentro dessas políticas públicas, a outra pode flexibilizar suas funções para atender às demandas emergentes. O que, no entanto, não é suficiente diante da complexidade do problema enfrentado.
Descreva, resumidamente, a importância acadêmica e social de sua pesquisa, isto é, sua contribuição para o universo científico e o cotidiano das pessoas.
Academicamente, essa pesquisa contribui para a discussão sobre a implementação de políticas públicas entre diferentes níveis, a partir do olhar sobre os arranjos institucionais e a coprodução. Do ponto de vista social, a pesquisa coloca uma lupa sobre a necessidade de adaptação a diferentes contextos das políticas públicas de enfrentamento à violência contra as mulheres, conforme é postulado pela Lei Maria da Penha e pelo Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência contra as Mulheres. Essas normativas, construídas a partir de muita luta dos movimentos de mulheres, estabelecem que o Estado deve atuar de forma integrada com a sociedade civil, e de forma articulada entre todas as esferas de governo, unidades federativas e Poderes, em busca de uma sociedade livre das desigualdades de gênero e da violência contra as mulheres, considerando a interseccionalidade da desigualdade de gênero com outros marcadores, como classe, raça, orientação sexual e território. Com esse trabalho, espera-se aprofundar o debate sobre a construção de políticas públicas que cheguem a todas as mulheres brasileiras, e não apenas àquelas que vivem em contextos urbanos.
Tabela traz as múltiplas perguntas que se buscou responder a partir da coleta de dados.
Figura explicativa sobre as diferentes dimensões que compõem os arranjos institucionais.
Tabela traz um resumo dos principais resultados encontrados a partir da análise dos dois casos pesquisados.
Imagem traz em tópicos as principais reflexões geradas a partir da análise.
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