Estudo ajuda a entender o papel do príon celular, proteína essencial para a proteção de células nervosas
Luciana Constantino | Agência FAPESP – O príon celular é uma proteína presente na superfície de quase todas as células, principalmente as que formam os sistemas nervoso central e imune. Essa molécula pode ser encontrada em sua forma “saudável” (conhecida como PrPc) ou “defeituosa” (a PrPsc), que funciona como uma partícula infecciosa capaz de causar doenças neurodegenerativas em mamíferos.
Em estudo divulgado na revista Molecular and Cellular Biochemistry, pesquisadores da Universidade Federal do ABC (UFABC) desvendaram parte do funcionamento do príon celular “saudável”, considerado essencial para a proteção de células nervosas. Pela primeira vez, o grupo brasileiro mostrou que a PrPc é essencial no processo de morte programada (apoptose) de um tipo de célula nervosa conhecido como astrócito e que isso ocorre por meio da ativação de caspase-3 (uma classe de proteases, enzimas que decompõem outras proteínas).
Trabalho conduzido na UFABC mostrou que a molécula atua como “sinalizadora” de morte celular para os astrócitos, as células mais abundantes do sistema nervoso central. Descoberta é peça importante para entender mecanismos de doenças neurodegenerativas (imagem: Wikimedia Commons)
Os resultados obtidos no estudo mostram que a proteína atua diretamente no processo de viabilidade, proliferação e autorregeneração celular, funcionando como um “sinalizador” de apoptose. Permite assim que os astrócitos executem corretamente suas inúmeras funções no sistema nervoso central, entre elas: oferecer sustentação e nutrientes para os neurônios; regular a concentração de neurotransmissores e de outras substâncias com potencial de interferir no funcionamento neuronal; integrar a barreira hematoencefálica, ajudando a proteger o cérebro contra patógenos e toxinas; e ajudar na manutenção da homeostase cerebral.
Como explicam os pesquisadores, o príon celular é uma proteína ancorada na membrana plasmática de todas as células, altamente presente no tecido cerebral e que auxilia na fixação da memória. Já a isoforma “defeituosa”, a PrPsc, está associada ao surgimento de doenças como a Creutzfeldt-Jakob – popularmente conhecida como mal da vaca louca e adquirida ao ingerir carne ou produtos derivados de gado portador de encefalopatia espongiforme bovina.
A nova descoberta sobre o papel do príon celular ajuda a entender, por exemplo, o funcionamento do estresse oxidativo do cérebro, provocado por doenças neurodegenerativas que causam o envelhecimento precoce, como Alzheimer e outras demências. Mesmo com todo o conhecimento adquirido sobre as funções da proteína nos últimos 15 anos, ainda restam dúvidas sobre como ela age e como se dá a interação molecular com a proteção ou a ativação dessas doenças.
No artigo publicado pelo grupo da UFABC, sob a coordenação da professora Giselle Cerchiaro, do Centro de Ciências Naturais e Humanas, mostrou-se por meio do estudo de linhagens celulares de astrócitos de camundongos como se dá a ativação de caspase-3 no processo de morte celular envolvendo o príon. O trabalho teve apoio da FAPESP.
Com experiência em bioquímica, atuando principalmente nas áreas de metais de transição, bioinorgânica e sinalização celular, Cerchiaro conta que a pesquisa começou analisando o papel que o cobre desempenharia juntamente com a proteína em processos de neurodegeneração. Isso porque a PrPc pode se ligar a metais, especialmente com até cinco íons de cobre.
“Em outro trabalho realizado em 2012 e publicado na revista Biochemical and Biophysical Research Communications, com um grupo da professora Vilma Regina Martins, do A.C.Camargo Cancer Center, usando também camundongos, mostramos que os astrócitos contendo o príon eram mais resistentes ao estresse oxidativo. Fomos investigar o papel do cobre nesse processo, mas vimos que não influencia”, conta Cerchiaro à Agência FAPESP.
Segundo a professora, a hipótese inicial era de que o cobre funcionasse como sinalizador de apoptose, mas a pesquisa apontou o príon com essa função. “Anteriormente acreditava-se que a PrPc agia como uma proteína antioxidante, mas não é isso. Ela age como sinalizadora ao estresse oxidativo, o que não era considerado”, explica.
Antes disso, em 2008, ao examinar as funções da PrPc nos níveis sistêmico, celular e molecular, uma pesquisa realizada por brasileiros foi a primeira a apresentar a mais ampla revisão feita até então sobre os agentes infecciosos da doença de Creutzfeldt-Jakob.
O trabalho, com a participação de Martins, foi coordenado à época pelo oncologista Ricardo Renzo Brentani, um dos principais nomes no mundo em pesquisa do câncer, que foi diretor-presidente da FAPESP e morreu em 2011.
Como foi realizada
A pesquisa publicada na Molecular and Cellular Biochemistry, cuja primeira autora é a doutoranda Caroline Sandanielo Marques, bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), usou duas linhagens celulares de astrócitos de camundongos: tipo selvagem e nocaute para PrPc (geneticamente modificado para não expressar a proteína).
“Nossos resultados mostram o aumento da proliferação celular para o nocaute para PrPc em comparação com o tipo selvagem, especialmente após 48 horas de incubação. Indica desregulação acumulativa na proliferação e provavelmente autorregeneração causada pela ausência de príon, afetando a cascata de sinalização celular para manter a sobrevivência, a homeostase e o desenvolvimento do tecido neural”, escrevem os pesquisadores no artigo.
Para determinar os níveis de metal intracelular, o grupo usou espectrometria de massa com plasma indutivamente acoplado (ICP-MS), indicando o papel crucial da PrPc na redução do cálcio intracelular. “A concentração de cálcio reduzida e a regulação negativa da caspase-3 nos astrócitos sem PrPc resultaram em uma taxa de crescimento mais rápida nas células em comparação com as do tipo selvagem. A presença de príon se mostra essencial para a morte celular e o crescimento saudável”, descreve o artigo.
O artigo Cellular prion protein activates Caspase 3 for apoptotic defense mechanism in astrocytes pode ser lido em https://link.springer.com/article/10.1007/s11010-021-04078-5.
Este texto foi originalmente publicado por Agência FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.
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