Grupo da UFABC utiliza inteligência artificial na busca por novos materiais
Aprendizagem de máquina pode acelerar descoberta de cristais bidimensionais, semelhantes ao grafeno, mas com propriedades específicas.
Representação da estrutura em forma de favo de mel dos átomos de carbono que compõem o grafeno
Maksym Kaplun / iStock / Getty Images Plus
Primeiro dos chamados materiais bidimensionais (2D) ou de uma única camada de átomos a ser isolado em laboratório, o grafeno foi “fabricado” inicialmente de forma prosaica em 2004. Os físicos Andre Geim e Konstantin Novoselov, da Universidade de Manchester, no Reino Unido, obtiveram esse sólido cristalino ao usar uma fita adesiva para esfoliar o grafite. Ambos os materiais são compostos apenas por átomos de carbono. Mas a geometria dos carbonos no grafeno é diferente da apresentada no grafite — e é essa peculiaridade que lhe confere propriedades singulares. No grafeno, eles formam somente uma lâmina de átomos que gera uma malha de formato hexagonal, como um favo de mel. No grafite, há várias camadas de grafeno, mas umas distantes das outras.
Desde a descoberta experimental do grafeno dessa maneira quase banal, os métodos de procura por outros materiais 2D com propriedades singulares se sofisticaram. Atualmente, uma das formas mais promissoras de buscar materiais de interesse formados exclusivamente por uma camada de átomos, muitas vezes composta por mais de um elemento químico, é recorrer às técnicas de inteligência artificial, sobretudo à chamada aprendizagem de máquina. Por meio dessa ferramenta computacional, modelos estatísticos preveem quais devem ser as características mais prováveis de um material 2D, já fabricado experimentalmente ou apenas previsto teoricamente.
O caminho inverso também é possível de ser trilhado com essa abordagem. “Podemos usar as técnicas de aprendizagem de máquina para buscar em bancos de dados quais materiais bidimensionais apresentam maior probabilidade de exibir uma ou várias propriedades de nosso interesse”, comenta o físico Gustavo Dalpian, da Universidade Federal do ABC (UFABC), que estuda o tema, conjuntamente com Adalberto Fazzio, do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), de Campinas, por meio de projeto financiado pela FAPESP. “Essa é uma área de pesquisa relativamente recente, chamada de informática de materiais, que permite avançarmos na direção do big data e tratarmos uma grande quantidade de informações.”
Dois estudos recentes do grupo da UFABC ilustram como essa abordagem pode gerar conhecimento sobre materiais bidimensionais, cujas ínfimas dimensões, da ordem de nanômetros, e propriedades particulares podem levar a uma miniaturização ainda maior de dispositivos já conhecidos e à criação de novos equipamentos. Um artigo publicado em fevereiro deste ano no periódico ACS Applied Materials & Interfaces indica que as técnicas de aprendizagem de máquina são bastante eficazes, com grau de acerto de cerca de 90%, em prever se um material 2D é ou não magnético. Em outro trabalho, Dalpian e colegas usam uma metodologia similar para identificar quais estruturas formadas por uma camada única de átomos tendem a apresentar uma configuração específica de spin (textura de spin), uma propriedade quântica intrínseca das partículas subatômicas, como os elétrons, associada ao momento angular. Esse segundo paper foi publicado na revista Scientific Data em 29 de abril.
Os materiais bidimensionais são formados por uma única camada de átomos.
Os sistemas baseados em aprendizagem de máquina são “ensinados” a reconhecer diferentes padrões associados a uma condição ou característica em meio a um grande conjunto de dados. As amostras que apresentam essa assinatura esperada são separadas e classificadas de forma distinta das que não a exibem. “Esse é um processo de descoberta de conhecimento”, comenta o físico Osvaldo Novais de Oliveira Júnior, do Instituto de Física de São Carlos da Universidade de São Paulo (IFSC-USP), que não participou dos estudos da equipe de Dalpian. “O ser humano faz inferências a partir de uma quantidade pequena de dados.”
Na oncologia, por exemplo, um algoritmo de aprendizagem de máquina pode ser programado para reconhecer as características visuais principais que distinguem um câncer de pele, como formato e coloração, de uma mancha cutânea benigna. Quando exposto a imagens de lesões de pele, o sistema separa as que apresentam esse padrão — e, portanto, têm grande chance de ser um tumor — das que não se encaixam nesse perfil.
A mesma lógica pode ser empregada na busca por moléculas ou compostos com características específicas. Basta ensinar o algoritmo de aprendizagem de máquina a reconhecer algum padrão associado ao magnetismo em materiais 2D, tema do primeiro trabalho do grupo da UFABC, e o sistema está pronto. O magnetismo é uma propriedade fundamental na construção de dispositivos para armazenamento de informação, como os discos rígidos de computador. O emprego de materiais 2D com essa propriedade poderia levar a uma redução ainda maior no tamanho dos dispositivos.
“O problema é que não se conhece a assinatura magnética típica de um cristal bidimensional”, comenta o físico Carlos Mera, que faz estágio de pós-doutorado na equipe de Dalpian e é coautor dos dois artigos. “Até uns cinco anos atrás, pensava-se que a geometria interna dos materiais 2D gerava instabilidades que os tornavam incompatíveis com o magnetismo.”
Ilustração de um sensor quântico usado para medir propriedades magnéticas de uma camada do material bidimensional tri-iodeto de cromo (CrI3)
Departamento de Física / Universidade de Basel
Em 2016, um grupo coordenado por pesquisadores do Instituto de Ciência Básica, de Seul, na Coreia do Sul, mediu antiferromagnetismo, um tipo de magnetismo, em folhas de trissulfeto de níquel fósforo (NiPS3), um material 2D. No ano seguinte, uma equipe da Universidade da Califórnia em Berkeley, Estados Unidos, observou ferromagnetismo, outra forma de magnetismo, em cristais bidimensionais de telureto de cromo-germânio (Cr2Ge2Te6). Desde então, o magnetismo tem sido observado em mais materiais 2D.
Diante dessa tendência, o time da UFABC resolveu analisar um grande banco de dados sobre materiais bidimensionais, o Computational 2D Materials Database (C2DB), mantido pela Universidade Técnica da Dinamarca. Na época do início do estudo, o repositório contabilizava uma série de informações sobre cerca de 3.400 materiais (hoje esse número chega a 4 mil). O objetivo da busca era descobrir se poderia haver um conjunto de características que funcionasse como um forte indicador de magnetismo em cristais formados por apenas uma camada de átomos. Em outras palavras, se haveria uma configuração típica associada a essa propriedade em materiais 2D, mais ou menos como o padrão de diagnóstico de câncer de pele baseado no formato e na coloração de uma mancha cutânea.
A estratégia foi bem-sucedida. A partir da análise das características de três parâmetros principais de um material bidimensional, o sistema baseado em aprendizagem de máquina conseguiu prever, com 85% de acerto, se um cristal tinha elevada probabilidade de ser magnético. A abordagem se mostrou ainda mais afiada, com 96% de certeza, para estimar que um material não deve ser magnético. Esses parâmetros são a composição química, a estrutura do cristal e a intensidade da chamada interação spin-órbita (uma propriedade quântica).
De forma resumida, o trabalho indica que materiais 2D compostos por átomos de um metal de transição (elementos químicos dos grupos 3 ao 12 da tabela periódica), com estruturas cristalinas de forma hexagonal (como o grafeno), quadrada ou triangular e com acoplamento spin-órbita de grau forte têm probabilidade elevada de ser magnético. Segundo as previsões do sistema de aprendizagem de máquina, 478 materiais do banco de dados são magnéticos, dos quais 373 apresentam ferromagnetismo e 105 antiferrogamentismo.
Na verdade, a informação sobre a presença ou ausência de magnetismo de cada material já constava do banco de dados C2DB antes de os pesquisadores brasileiros iniciarem seu trabalho. Saber isso é essencial para calcular o grau de acerto da busca por esse parâmetro em cristais bidimensionais com o emprego de técnicas de aprendizagem de máquina e validar essa abordagem. “O que fizemos foi averiguar se haveria um pequeno número de propriedades que pudesse funcionar como filtros e permitisse prever, com o auxílio de técnicas de big data, se um material 2D provavelmente seria ou não magnético”, explica Dalpian. “Conseguirmos atingir esse objetivo e até dizer se o material tende a apresentar ferromagnetismo ou antiferromagnetismo.”
Assim, na procura por novos materiais 2D magnéticos, é possível descartar logo de cara uma série de cristais que, segundo essa abordagem, tem baixíssima probabilidade de apresentar essa propriedade. Os pesquisadores evitam dedicar tempo e esforços com compostos desconhecidos que tendem a não exibir magnetismo e podem se concentrar em materiais potencialmente mais promissores.
No segundo trabalho, os pesquisadores também usaram o banco de dados C2DB para garimpar materiais que apresentassem um efeito quântico associado à configuração dos elétrons, o spin splitting. De acordo com o estado do spin (ou momento angular) dos elétrons, se apontando para cima ou para baixo, os átomos de um material exibem diferentes configurações que, em alguns casos, podem alterar seus níveis de energia. Há quatro variações conhecidas desse efeito: spin splitting do tipo Zeeman, Rashba, Dreshelhaus e de elevada ordem.
“Calculamos que 436 materiais do banco de dados devem apresentar alguma forma de spin splitting. Para cada cristal, determinamos qual é o tipo de efeito que ele provavelmente tem”, diz o engenheiro de materiais Elton Ogoshi, que faz doutorado na UFABC e é coautor do trabalho. Em tese, o controle do spin de materiais 2D pode ser a base da chamada spintrônica, uma forma de computação baseada na manipulação dessa propriedade quântica para armazenar e processar informação.
Além de utilizar algoritmos de aprendizagem de máquina, esse segundo artigo do grupo de pesquisadores também envolveu o emprego da técnica estatística conhecida como inferência bayesiana. Essa última abordagem, muito usada em programas de inteligência artificial, permite atualizar a probabilidade de uma hipótese ocorrer à medida que mais evidência ou informação se torna disponível. “A inferência bayesiana é uma forma de classificação de dados”, comenta Oliveira Júnior. Com ela, é possível escolher sempre a hipótese mais provável. A estratégia aumenta a chance de acertar mais, embora não elimine o erro.
Projeto
Interfaces em materiais: Propriedades eletrônicas, magnéticas, estruturais e de transporte (nº 17/02317-2); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Adalberto Fazzio (CNPEM); Investimento R$ 7.540.853,49
Artigos científicos
NASCIMENTO, G.M. et al. High-throughput inverse design and Bayesian optimization of functionalities: spin splitting in two-dimensional compounds. Scientific Data. On-line, 29 abr. 2022.
ACOSTA, M.A. et al. Machine Learning Study of the Magnetic Ordering in 2D Materials. ACS Applied Materials & Interfaces. On-line 9 fev. 2022.
Publicado na Edição 315, de maio de 2022, na seção FÍSICA, da Revista Pesquisa FAPESP. Texto por Marcos Pivetta. Inteligência artificial é usada na busca por novos materiais.
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