Contribuições da ciência básica da UFABC para o monitoramento do SARS-CoV-2 na comunidade universitária
Em março de 2020, a doença infecciosa do século oficialmente atingiu o Brasil. Era o momento de enfrentar uma das maiores crises sanitárias e humanitárias de nosso tempo: a pandemia de COVID-19, causada pelo coronavírus da síndrome respiratória aguda grave 2 (SARS-CoV-2). Como pesquisadora da UFABC na área de biologia molecular de microrganismos patogênicos, fui convidada a participar da reunião que discutiu as ações imediatas da Universidade diante da pandemia. Posteriormente, integrei o Comitê de Ações da Gestão contra a COVID-19 da UFABC e, sequencialmente, coordenei a equipe científica de monitoramento do SARS-CoV-2 na comunidade da UFABC, no período de maio de 2021 a dezembro de 2022, no laboratório de agentes patogênicos do campus de São Bernardo do Campo.
Essa ação contou com a participação de alunos de pós-graduação e servidores de diferentes setores da Universidade. Neste artigo, apresentarei os caminhos e as experiências que possibilitaram o desenvolvimento das ferramentas para a realização deste trabalho.
A gravidade da crise sanitária mobilizou toda a sociedade, incluindo instituições governamentais e não governamentais. Em abril de 2020, a UFABC recebeu financiamento do Ministério da Educação, intermediado pelas Pró-Reitorias de Pesquisa e de Pós-Graduação da Universidade, para desenvolver projetos e ações na linha de frente do combate à COVID-19, em colaboração com a Faculdade de Medicina do ABC (FMABC).
O projeto aqui apresentado foi realizado no laboratório de análises clínicas da FMABC, coordenado pelo então vice-reitor da instituição, Fernando Luiz Affonso da Fonseca, que, naquele momento, havia acabado de receber autorização do Instituto Adolfo Lutz para realizar o diagnóstico de SARS-CoV-2 em pacientes da região do Grande ABC. A UFABC contribuiu fornecendo insumos para a criação de 7.000 testes por transcrição reversa e reação em cadeia da polimerase (RT-PCR), em tempo real. Além disso, a UFABC também viabilizou o envolvimento de três bolsistas de pós-graduação para auxiliar na realização dos testes durante um período de três meses.
Os requisitos para a realização do teste de SARS-CoV-2 são muito específicos e estavam disponíveis em poucos laboratórios de análises clínicas. Esses laboratórios possuem estruturas e normas rígidas para a coleta, transporte e manipulação de amostras humanas. A coleta das amostras de secreções nasofaríngeas e aspirados pulmonares de pessoas com suspeita de infecção era feita por profissionais de saúde, devidamente paramentados. Essas amostras tinham que ser transportadas até o laboratório em condições seguras, a fim de evitar a contaminação dos profissionais que realizavam o transporte.
Ao chegar no laboratório, as amostras eram encaminhadas diretamente para a sala de manipulação do laboratório de análises clínicas da FMABC. Nesse local, os laboratoristas utilizavam macacões cirúrgicos e toda a paramentação necessária, semelhante à utilizada por profissionais de saúde. O laboratório estava equipado com uma cabine de fluxo laminar adequada para a manipulação das amostras recebidas, desde a extração do material genético do vírus, o ácido ribonucleico (RNA), para utilização no laboratório de biologia molecular. No entanto, o alto custo dos reagentes, equipamentos de segurança e infraestrutura laboratorial, juntamente com a necessidade de profissionais especializados, inviabilizaram o diagnóstico em massa do SARS-CoV-2 durante esse período. O custo de um teste de SARS-CoV-2 era de aproximadamente 80,00 reais, e havia escassez de insumos e equipamentos de segurança no mercado.
Em alguns momentos, foram utilizados conhecimentos básicos em biologia molecular para a preparação de soluções no laboratório da UFABC para a extração de RNA. As lições aprendidas e a experiência adquirida nesse período foram o impulso para a busca por alternativas que possibilitassem o diagnóstico de SARS-CoV-2 em laboratórios de biologia molecular com biossegurança básica de pesquisa e análises clínicas (nível 2). A intenção era viabilizar o diagnóstico em massa e com custos reduzidos.
O primeiro desafio para simplificar o diagnóstico de SARS-CoV-2 era obter uma amostra biológica que pudesse ser coletada de forma menos invasiva, como a saliva, que é uma das fontes de transmissão do vírus. Até aquele momento, as pesquisas de diagnóstico do vírus na saliva haviam sido realizadas com sucesso, mas em quantidades líquidas, de até dois mililitros, representando alto risco de disseminação do vírus. Isso ocorria devido à necessidade de uma maior quantidade de saliva em comparação com as secreções nasofaríngeas.
Outra alternativa consistia em coletar a amostra de saliva em um material absorvente. Como os swabs nasais podem ser feitos de algodão, testamos bolinhas de algodão de 0,5 cm de diâmetro, o mesmo diâmetro dos tubos de coleta de sangue. A extração dos ácidos nucleicos era realizada com kits de alto custo. Portanto, optamos por utilizar um reagente básico (tipo Trizol), preparado no laboratório a partir de seus componentes. Os resultados mostraram que o algodão era um bom veículo para amostras biológicas em testes de RT-PCR convencional para SARS-CoV-2, usando RNA extraído com solução tipo Trizol, a partir da secreção nasofaríngea congelada de pacientes positivos.
Figura 1. Teste sorológico de SARSCoV2 e estudo piloto de coleta de saliva Fonte: acervo da autora |
Com financiamento da UFABC, realizamos um estudo piloto envolvendo as pessoas que estavam trabalhando presencialmente na UFABC em outubro de 2020 (350 pessoas, sendo a maioria trabalhadores terceirizados). Investigamos a prevalência de anticorpos contra SARS-CoV-2 com kits comerciais, a partir de uma gota de sangue coletada do dedo (Figura 1). Ao mesmo tempo, solicitamos aos participantes uma amostra de saliva em algodão. Os resultados obtidos confirmaram a detecção de SARS-CoV-2 por RT-PCR convencional e por tempo real. As etapas subsequentes tinham como objetivo verificar se a amostra coletada em algodão se preservava em temperatura ambiente, sem aditivos e, também, buscar adaptar o método para auto coleta e garantir o transporte seguro.
Dessa forma, desenvolvemos o primeiro kit de auto coleta de saliva (Figura 2), preparado em um envelope de correio simples contendo etiqueta com instruções para a coleta, um envelope de lacre com etiqueta para preencher as informações do indivíduo, um par de luvas plásticas para que a pessoa pudesse manipular a bolinha de algodão e levá-la à boca, a bolinha de algodão autoclavada em um saquinho para alimentos, e um tubo de coleta de sangue a vácuo sem aditivos para acondicionar o algodão com a saliva. Para evitar a contaminação durante o transporte, utilizamos lenços embebidos em álcool a 70% (utilizados no setor de alimentos) para envolver o tubo, garantindo sua proteção. A validação do teste foi realizada em um experimento conduzido na FMABC, comparando o método que desenvolvemos com o teste realizado pelo laboratório de análises clínicas da FMABC (Oliveira et al., 2022).
Tudo estava pronto para iniciar o monitoramento de SARS-CoV-2 na comunidade UFABC utilizando o kit produzido diretamente dentro da Universidade. Inicialmente, os testes eram disponibilizados semanalmente para todas as pessoas em atividade presencial na UFABC. Conforme as atividades presenciais foram sendo retomadas, a testagem dos discentes da graduação e pós-graduação foi realizada por amostragem, enquanto que a testagem dos servidores e trabalhadores terceirizados foi mantida em sua totalidade. O kit de diagnóstico passou por atualizações, incluindo questionários específicos por categoria, com a colaboração da equipe de comunicação da UFABC (Figuras 3 e 4). Também implementamos o uso de cotonetes de segurança com 0,5 cm de diâmetro. No total, foram realizados 51.000 testes, com infraestrutura e consumíveis financiados pela UFABC, e conduzidos por estudantes de pós-graduação. O custo de cada teste variou entre 20 e 30 reais.
Para que os testes fossem bem-sucedidos, a participação da Prefeitura Universitária foi fundamental. Eles disponibilizaram motoristas e veículos para o transporte e reposição dos kits, além de servidores técnico-administrativos que ajudaram na divulgação dos resultados. Inicialmente, esses resultados eram disponibilizados por meio do COVIDATA, uma ferramenta digital desenvolvida sob coordenação da Dra. Fernanda Nascimento Almeida. Posteriormente, os testes positivos passaram a ser comunicados por uma equipe de servidores da Pró-Reitoria de Ações Afirmativas (PROAP), com a implementação de um método de comunicação via WhatsApp coordenado pela servidora Maira Andretta, pós-graduanda em Biossistemas.
O método de coleta de saliva também se mostrou viável para testes de SARS-CoV-2 em crianças, idosos e pessoas acamadas. Foram realizados testes em familiares da comunidade UFABC. Neste ano de 2023, estamos conduzindo o sequenciamento de segmentos de SARS-CoV-2 a partir das amostras positivas coletadas durante o monitoramento, para fins de estudos epidemiológicos.
Paralelamente, as avaliações do vírus no ar, iniciadas pelo servidor e pós-graduando em Biossistemas, Diego Marin Fermino, estão sendo ampliadas com o uso de insetos e plantas como sentinelas. A saliva coletada em algodão também está sendo testada para a detecção de outras doenças infecciosas por meio da detecção de ácidos nucleicos e anticorpos. As ferramentas desenvolvidas durante esse período de crise sanitária permitem discutir a inclusão do laboratório de agentes patogênicos da UFABC na vigilância epidemiológica de doenças infecciosas na população da região do ABC. Esse papel também pode ser adotado por outros laboratórios de ensino e pesquisa, contribuindo para a segurança sanitária, tanto regional quanto amplamente.
Figura 2. Primeiro teste de coleta de saliva disponível para uso. Fonte: acervo da autora
Figura 3. Kits de coleta de saliva por categoria. Servidores e terceirizados. Fonte: acervo da autora
Figura 4. Kits de coleta de saliva por categoria. Discentes e pesquisadores. Fonte: acervo da autora
Gostaria de expressar minha gratidão a todos que participaram direta e indiretamente deste estudo, com destaque para a equipe de pós-graduandos e graduandos do laboratório de Agentes Patogênicos da UFABC, aos estagiários bolsistas e voluntários, à Dra. Aline D. Cabral e à Dra. Andreia M. S. Carmo. Agradeço também à então prefeita universitária, Simone A. Pellizon, à Mariella Mian, e aos Professores Doutores Vitor Marchetti, Mônica Schröder, Dácio Matheus, Wagner de Carvalho e Rodrigo Cunha, pelo apoio e confiança.
Minha gratidão se estende a toda comunidade UFABC.
Referências
Oliveira, L. P. R., et al. Alternative SARS-CoV-2 detection protocol from self-collected saliva for mass diagnosis and epidemiological studies in low-income regions. J Virol Methods, 2022. 300: p. 114382.
Medeiros da Silva, R. C., et al. Saliva as a possible tool for SARS-CoV-2 detection: A review. Travel Med Infect Dis, 2020. 38: p. 101920.
Wang, R., et al. Confronting the threat of SARS-CoV-2: Realities, challenges, and therapeutic strategies (Review). Exp Ther Med, 2021. 21(2): p. 155.
Autora
Márcia Aparecida Sperança
Professora Doutora vinculada ao Centro de Ciências Naturais e Humanas (CCNH) da Universidade Federal do ABC
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