Spintrônica em perovskitas híbridas bidimensionais: o encontro da eletrônica com o magnetismo
A spintrônica é uma área inovadora que une semicondutores e magnetismo para o armazenamento e processamento de informações, aproveitando o spin do elétron como um novo grau de liberdade para dispositivos eletrônicos. Materiais bidimensionais (2D), como as perovskitas híbridas, têm sido alvo de intensas pesquisas devido às suas propriedades optoeletrônicas aprimoradas por efeitos de confinamento quântico. Nossas pesquisas nesse campo têm concentrado esforços na indução de magnetização nesses semicondutores 2D por meio de duas estratégias complementares: (i) dopagem com íons magnéticos e (ii) indução de magnetismo em íons não magnéticos.
Dispositivos eletrônicos convencionais baseiam-se principalmente no transporte de elétrons - a eletrônica. No entanto, ao considerar o estado de spin do elétron, surge um grau de liberdade adicional que pode aprimorar a funcionalidade e o desempenho dos dispositivos - a spintrônica. A spintrônica utiliza o spin do elétron e sua órbita ao redor do núcleo (momento magnético de spin e orbital) como um novo parâmetro para o processamento e armazenamento de informações em dispositivos magnéticos e eletrônicos de estado sólido.
Um conceito fundamental dos dispositivos spintrônicos é representado na Figura 1, mostrando a influência dos graus de liberdade de spin e carga do elétron (magnetismo e eletrônica) como base dessa tecnologia, que busca o controle magnético de propriedades elétricas e vice-versa. O acoplamento eficaz entre spin, carga e rede em sistemas eletrônicos, optoeletrônicos e magnetoeletrônicos teria implicações significativas na eficiência de armazenamento, transferência de dados e economia de energia. O spin é a propriedade dos elétrons que gera o magnetismo, sendo classicamente descrito como uma "rotação" intrínseca que o elétron possui em torno do seu próprio eixo. Ele pode ser definido em dois estados: spin-up (+1/2), representando rotação horária, e spin-down (-1/2), representando rotação anti-horária.
Figura 1. Ilustração dos graus de liberdade de spin e de carga na abordagem da spintrônica, o qual exerce uma influência significativa na área da Nanotecnologia. Fonte: adaptada de [1]
O uso de estados magnéticos como suporte para a spintrônica ganhou destaque com a descoberta do efeito de magnetorresistência gigante (GMR), que foi agraciado com o Prêmio Nobel de Física em 2008. Esse avanço abriu caminho para uma nova geração de dispositivos eletrônicos em miniatura, como discos rígidos de computadores, capazes de armazenar informações com densidade muito maior. A spintrônica concentra-se na geração, manipulação e detecção controlada do spin dos elétrons. Além disso, o transporte de spin é fundamental, permitindo a transmissão de informações com base exclusivamente na dependência do spin dos elétrons.
Para alcançar esses objetivos, materiais semicondutores são frequentemente utilizados, permitindo o controle preciso do movimento dos elétrons juntamente com seus estados de spin. Essa abordagem possibilita a integração de processamento, armazenamento, detecção e lógica em uma plataforma integrada, oferecendo vantagens em termos de dimensionamento, consumo de energia e velocidade de processamento de dados em comparação com a eletrônica baseada apenas em semicondutores.
Apesar dos avanços rápidos na área da spintrônica, continuamos a buscar novas estratégias que permitam a geração e utilização de correntes elétricas com polarização de spin em materiais semicondutores. Materiais bidimensionais lamelares, como grafeno, MXenes, perovskitas da família Ruddlesden-Popper e Dion-Jacobson, e dicalcogenetos de metais de transição, apresentam propriedades importantes que podem ser exploradas na spintrônica. Em suas estruturas cristalinas periódicas, esses materiais facilitam o acoplamento entre os graus de liberdade magnéticos do spin e as cargas elétricas. Além disso, sua natureza bidimensional permite a integração com outras tecnologias existentes em filmes finos, abrindo caminho para avanços significativos em áreas como eletrônica flexível, comunicação de dados e computação quântica.
Perovskitas híbridas com dimensões reduzidas em uma ou mais direções têm atraído considerável atenção devido às suas propriedades físicas decorrentes de efeitos de confinamento quântico. Ao reduzir a dimensionalidade, essa classe de materiais oferece uma plataforma ampla para ajustar energias de gap, alta mobilidade de portadores e transporte eficiente de cargas elétricas. As perovskitas híbridas 2D são materiais cristalinos que consistem em uma estrutura inorgânica lamelar composta por camadas de octaedros de haletos com íons metálicos em seu centro. Esses octaedros são confinados por moléculas orgânicas, conhecidas como espaçadores. Enquanto as camadas inorgânicas semicondutoras fornecem propriedades elétricas e ópticas, as moléculas orgânicas conferem estabilidade estrutural, proteção contra umidade e confinamento quântico, agindo como barreiras de potencial
Uma das estratégias amplamente estudadas para a manipulação do spin em perovskitas híbridas é a substituição ou dopagem de átomos na estrutura cristalina por íons magnéticos, criando spins localizados. A dopagem com íons magnéticos como Fe, Mn e Co desempenha um papel crucial para a eletrônica e a spintrônica. Nosso trabalho pioneiro sobre esse tema demonstrou com sucesso a introdução de íons de ferro em microfios de perovskita MAPbI3, resultando em perovskitas semicondutoras e magnéticas. A incorporação do dopante também introduziu desordem e defeitos na estrutura eletrônica da MAPbI3. Embora tenhamos conseguido introduzir graus de liberdade magnéticos no sistema, observamos perdas nas propriedades ópticas, como a redução na resposta da fotoluminescência. Portanto, evitar perdas nas propriedades ópticas ao mesmo tempo em que introduzimos magnetismo se apresenta como um objetivo importante para a spintrônica. Nossa estratégia foi induzir momentos magnéticos na estrutura de perovskitas 2D. Uma forma racional foi criar desequilíbrio e/ou descompensação de carga elétrica na interface envolvendo a camada octaédrica e os espaçadores orgânicos. Como será mostrado, as moléculas de histidina, um aminoácido natural, desempenharam um papel crucial nesse processo.
Devido à sua composição química e arranjo molecular, a histidina foi capaz de induzir o reequilíbrio de carga na interface da camada inorgânica. Por meio de técnicas experimentais como ressonância magnética nuclear (RMN) e espectroscopia no infravermelho por transformada de Fourier (FTIR), observamos que o grupo carboxílico e o anel imidazol provocaram um deslocamento parcial de carga entre as interfaces da camada semicondutora do espaçador isolante. A estrutura bidimensional da perovskita contendo histidina, que cresceu na forma de microplaquetas, está ilustrada na Figura 2. Análises adicionais de fotoluminescência revelaram um pico de emissão a 608 nm, correspondendo ao arranjo com três camadas octaédricas confinadas.
Figura 2. Representação esquemática da estrutura cristalina, na qual os octaedros estão confinados através da presença das moléculas de histidina, que atuam como separadores. As microscopias ótica e eletrônica revelam claramente a morfologia 2D das microplaquetas. Fonte: elaborada pelos autores
Figura 3. Medidas de magnetização em função da temperatura revelando o estado paramagnético da estrutura 2D. Os gráficos inscritos mostram medidas de magnetização em função do campo magnético (curvas isotérmicas) (b) e o espectro de EPR (c) para a perovskita bidimensional magnética. Ilustra também o ambiente local proposto na interface entre os octaedros de chumbo-iodo, formando uma monocamada com momento magnético devido à presença das espécies de Pb3+. Fonte: elaborada pelos autores
Medições magnéticas foram realizadas, revelando uma resposta paramagnética do tipo Curie em baixas temperaturas. Essa resposta paramagnética foi atribuída ao alinhamento dos momentos de spin na estrutura inorgânica. Além disso, a presença das moléculas orgânicas contribuiu para uma natureza diamagnética em campos magnéticos mais elevados (Figura 3b). A interação das moléculas de histidina com os octaedros da perovskita resultou na formação de uma camada magnética na interface, gerando um momento magnético de spin. Isso foi confirmado por medidas de ressonância paramagnética eletrônica (EPR), que revelaram a origem microscópica dos momentos magnéticos locais. O sinal EPR observado foi atribuído exclusivamente aos estados paramagnéticos na valência Pb3+ com spin S = ½ e g ≈ 2, indicando que os elétrons 6s1 são a principal fonte de magnetismo nesse sistema (Figura 3c).
Essas perovskitas híbridas 2D magnetizadas representam uma nova classe de materiais promissores, caracterizados pela presença de um momento magnético em sua interface. Isso pode resultar em propriedades físicas intrigantes, graças a um delicado equilíbrio entre o magnetismo e o efeito de confinamento quântico na camada inorgânica. O desenvolvimento de pesquisas nessa interface entre Física, Química e Ciência dos Materiais, com forte interdisciplinaridade, promete abrir novas possibilidades para a integração de dispositivos magneto-eletrônicos mais avançados. Esses avanços são essenciais para o processamento de informações e o armazenamento de dados por meio da spintrônica, proporcionando um campo de pesquisa e desenvolvimento repleto de oportunidades.
Referências
Tofanello A, Freitas A L M, Queiroz T B, Bonadio A, Martinho H, aSouza J A. (2022) Magnetism in a 2D Hybrid Ruddlesden–Popper Perovskite through Charge Redistribution Driven by an Organic Functional Spacer. J. Phys. Chem. Lett., 13, 6, 1406–1415.
Bonadio A, Tofanello A, Freitas A L M, de Paula V G, Dalpian G M, Souza J A. (2021) Tailoring the Optical, Electronic, and Magnetic Properties of MAPbI3 through Self-Assembled Fe Incorporation. J. Phys. Chem. C, 125, 28, 15636–15646.
Freitas A L M, Souza J A (2023) Water-induced dimensionality conversion from 3D perovskites to microwires and 2D hybrid halide perovskites. J. Mater. Chem. C, 11, 6651-6661.
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Hirohata A, Yamada K, Nakatani Y, Prejbeanu I-L, Diény B, Pirro B, Hillebrands B (2020) Review on spintronics: Principles and device applications. Journal of Magnetism and Magnetic Materials, 509, 166711.
Autora
Aryane Tofanello
Doutora e pós-doutora pelo programa de pós-graduação em Nanociências e Materiais Avançados da Universidade Federal do ABC
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Autor
José Antonio Souza
Professor Doutor vinculado ao Centro de Ciências Naturais e Humanas (CCNH) da Universidade Federal do ABC
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