Uma carta para Léa Garcia: uma vida dedicada à arte e à luta antirracista
Estimada Léa,
Escrevemos a você primeiramente para agradecer pela sua contribuição à arte e à cultura deste país. Há seis décadas o Brasil acompanha sua trajetória no teatro, cinema e televisão, marcada pelo Teatro Experimental do Negro e por significativos papeis em produções como Escrava Isaura, Xica da Silva, Orfeu Negro, entre outras.
Em um país onde o racismo estrutural atravanca sonhos e vidas, viola e violenta os direitos, a cultura e até mesmo a fé dos/as negros/as, você denunciou o racismo e a escravização do povo negro por meio das telas e palcos e, com seus personagens e ativismo, contribuiu para que pessoas negras se sentissem representadas. Sabemos, também, que sua luta foi além, como no Hospital Psiquiátrico Philippe Pinel, onde você desenvolveu oficinas apoiadas no Teatro Experimental do Negro.
Como você bem sabe, Léa, pessoas negras no Brasil, e ainda mais as mulheres negras, encaram muitos obstáculos na participação e reconhecimento no mercado de trabalho. Você mesma manteve-se como servidora pública federal, exercendo essa atividade paralelamente às artes, uma vez que a oferta de trabalho e a remuneração de atrizes negras eram inferiores a das atrizes brancas de sua época. Hoje, desigualdades de raça e gênero seguem presentes: segundo o IBGE, o percentual de mulheres brancas com ensino superior completo é mais que o dobro do calculado para as mulheres pretas ou pardas, isto é, 2,3 vezes maior (dados de 2016). No mesmo ano, 60,9% dos cargos gerenciais eram ocupados por homens e apenas 39,1% pelas mulheres. Aqui na UFABC, entre os/as pró-reitores/as e adjuntos/as 42,8% são mulheres, no entanto, apenas um cargo entre esses é ocupado por uma pessoa negra.
Mesmo com os avanços alcançados com políticas afirmativas, mostra-se necessário que essas desigualdades sejam mais problematizadas e enfrentadas na UFABC. Em 2021, estudantes pretos/as, pardos/as e indígenas já representavam 52,4% da população universitária no Brasil. Na nossa universidade, em 2021, 44,04% de nossos/as estudantes se declararam brancos/as, 7,06% pretos/as, 14,69% pardos/as e 0,08 indígenas, ou seja, um total de 21,83% de estudantes pretos/as, pardos/as e indígenas, muito abaixo do percentual encontrado nacionalmente. Em 2021 foi aprovada na UFABC a Política de Ações Afirmativas de acesso e permanência também nos cursos de Pós-Graduação stricto sensu, o que esperamos que amplie o ingresso de estudantes preto/as, pardos/as e indígenas nesse grau acadêmico.
Não basta, no entanto, garantir o ingresso desses/as estudantes no ensino superior, mas sua permanência. Um estudo do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA), da UERJ, aponta que as dificuldades financeiras estão entre os principais fatores que levam estudantes de graduação pretos/as e pardos/as a considerar o abandono do curso. Além disso, estas/es estudantes encontram mais barreiras para exercer cuidados com a saúde e estão entre os que mais dependem da rede pública para atendimento médico e psicossocial. À realidade acima citada, somam-se situações de violência, preconceito e discriminação que atingem estudantes pretos/as, pardos/as e indígenas como demonstra a V Pesquisa Nacional de Perfil Socioeconômico e Cultural dos(as) graduandos(as) das IFES (2018).
Frente a esse quadro, é dever de uma instituição que se preocupa com a questão racial ampliar e aprimorar ações antirracistas, criando e aperfeiçoando regras e mecanismos que contribuam para a promoção da igualdade e da diversidade.
Além disso, tendo em vista que ainda hoje as políticas de permanência mostram-se insuficientes para abarcar todas as realidades que a diversidade impõe, é imperativo continuar lutando para que Leas, Dandaras, Zumbis e Acotirenes tenham o direito de serem e de estarem como e onde desejarem, podendo ocupar os espaços das artes, das políticas públicas e todos os outros espaços da sociedade.
Nos despedimos, encarando o dever de seguir na luta contra o racismo e contra todas as formas de violência e opressão presentes na nossa sociedade e na nossa universidade.
Atenciosamente,
Equipes da Seção Psicossocial e de Direitos Humanos da PROAP
[1] Léa Garcia nasceu em março de 1933, no Rio de Janeiro, e faleceu recentemente, em 15 de agosto de 2023. Filha de uma costureira e de um bombeiro, deixou sua casa aos 11 anos para morar em Copacabana com sua avó, trabalhadora doméstica. Sua trajetória artística foi marcada por trabalhos notáveis. Estreou no teatro, em 1952, com a peça "Rapsódia Negra", desenvolvida no âmbito do Teatro Experimental do Negro. No cinema, podemos citar como alguns de seus trabalhos importantes, os filmes "Orfeu Negro" (1959) e "Filhas do Vento" (2004), pelo qual foi homenageada com o prémio de Melhor Atriz no Festival de Gramado. Na televisão, ficaria bastante conhecida por papéis em novelas, tais como "Escrava Isaura" (1976), "Tocaia grande" (1995), "Xica da Silva" (1996), "Anjo Mau" (1997), "O Clone" (2001), entre outros sucessos. Léa se tornou referência ao conquistar espaço e reconhecimento em um ambiente fortemente atravessado pelo racismo estrutural. Em sua luta pela igualdade racial, foi uma importante voz que abriria caminho para outros atores e atrizes na dramaturgia brasileira, conferindo visibilidade às experiências de exclusão, mas também de superação, da população negra.
[2] https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101551_informativo.pdf
[3] Campos, L A; Peixoto, F O. A diversificação racial e econômica do ensino superior público brasileiro depois das cotas. 2022. https://pp.nexojornal.com.br/opiniao/2022/A-diversifica%C3%A7%C3%A3o-racial-e-econ%C3%B4mica-do-ensino-superior-p%C3%BAblico-brasileiro-depois-das-cotas
[4] UFABC. Pró Reitoria de Graduação. Número de alunos na graduação, por cor/raça declarada e ano. https://dados.ufabc.edu.br/bases-dados
[5] https://propg.ufabc.edu.br/wp-content/uploads/resolucao-78-2021-cpg.pdf
[6] Boletim GEMAA nº 8. Raça, gênero e saúde mental nas universidades federais. 2020. https://gemaa.iesp.uerj.br/wp-content/uploads/2020/07/Boletim-Sa%C3%BAde-Mental.pdf
[7] ANDIFES. V Pesquisa Nacional de Perfil Socioeconômico e Cultural dos(as) graduandos(as) das IFES(2018), p.162-164. https://www.andifes.org.br/wp-content/uploads/2019/05/V-Pesquisa-Nacional-de-Perfil-Socioeconomico-e-Cultural-dos-as-Graduandos-as-das-IFES-2018.pdf
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