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Página inicial > Divulgação Científica > PesquisABC > Edição nº 37 - Outubro de 2024 > A Maternagem na Docência de Educadoras Infantis: Implicações do Papel da Mulher Trabalhadora no Ensino e Cuidado às Crianças
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A Maternagem na Docência de Educadoras Infantis: Implicações do Papel da Mulher Trabalhadora no Ensino e Cuidado às Crianças

imagem ilustrativa

A Revista Eletrônica PesquisABC possui o seguinte registro ISSN: 2675-1461

Gabriela Liviero Moraes *, Rebeca de Cássia Daneluci **

* Graduada em Psicologia (bacharelado e licenciatura) na Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS)

** Professora e gestora do curso de Psicologia da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS)

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** https://orcid.org/0009-0000-7102-6783

 

Resumo: A presente pesquisa versa sobre a temática de mulheres trabalhadoras do ensino fundamental infantil integral. Estas professoras esbarram no seu cotidiano, com questões que, além de ensinar, cuida-se e, educa-se as crianças, que passam grande parte do seu tempo sob suas responsabilidades. Sendo assim, o papel de professora por vezes se confunde ou mistura com o de maternagem, o que pode gerar uma sobrecarga física e psíquica. Neste sentido, temos como objetivo geral compreender como a relação entre o papel materno e a atuação na educação infantil integral interferem no sofrimento psíquico das professoras. A metodologia utilizada foi clínico-qualitativo através de entrevista semiestruturada, investigando a rotina, as atribuições e as condições de trabalho. Os dados foram analisados a partir da referência teórica da psicanálise. Os resultados apontam para a existência de sofrimento decorrente das atividades cotidianas do trabalho com crianças pequenas e as referências que a cercam. A maternagem se apresenta ora como categoria afastada das técnicas da profissão, ora atrelada com a construção de um produto narcísico diante do desenvolvimento do trabalho da professora com um estudante, contribuindo para o reconhecimento dos atravessamentos da posição de cuidado historicamente atribuída às mulheres e o impacto na atuação com crianças pequenas. 

Palavras-chave: educação infantil; maternagem; adoecimento psíquico.

 

Abstract

This research is about women who work in comprehensive primary education. These teachers come up against issues in their daily lives: in addition to teaching, they also look after and educate children, who spend a large part of their time under their responsibility. As such, the role of teacher is sometimes confused or mixed with that of motherhood, which can lead to physical and psychological overload. With this in mind, our overall aim is to understand how the relationship between the maternal role and working in comprehensive early childhood education affects the psychological distress of female teachers. The methodology used was clinical-qualitative through semi-structured interviews, investigating the routine, duties and working conditions. The data was analyzed using the theoretical reference of psychoanalysis. The results point to the existence of suffering resulting from the daily activities of working with young children and the references that surround it. Motherhood is sometimes presented as a category removed from the techniques of the profession, sometimes linked to the construction of a narcissistic product in the face of the development of the teacher's work with a student, contributing to the recognition of the crossings of the position of care historically attributed to women and the impact on working with young children.

Keywords: early childhood education; mothering; psychic illness.

 

A creche enquanto instituição de ensino como conhecemos hoje tem seu processo histórico de formação alinhado com a inserção das mulheres operárias no mercado de trabalho. Para compreendermos como aconteceu esse processo e qual a relação com o trabalho docente de professoras do ensino infantil integral, é necessário retornar um pouco à história para pensar quem eram as responsáveis pelos cuidados com as crianças pequenas. 

Retornemos então para o final dos anos oitocentos. Com a abolição da escravidão e a reformulação nas ordens e organizações sociais, se tem uma nova constituição de modelo de família burguesa e a divisão de trabalho no interior dessas casas fez com que as atividades de cuidado das crianças recaiam sobre a função da mãe, não somente a tutela e responsabilidade dos filhos, como também as tarefas domésticas de alimentação, higiene e vestimenta, não recorrendo mais as amas de leite- que até então desempenhavam esse papel (Scott, 2012). Esta é a primeira evidência da característica do trabalho de cuidado: O trabalho de cuidado com as crianças pequenas, demarcados na primeira infância (de zero a 6 anos), evidencia as desigualdades atravessadas pelo gênero, pela raça e pela classe. 

Essa nova estrutura social sofreu modificação com o advento da revolução industrial e os impactos nas famílias burguesas se fez presente diante do movimento de reinvenção das mulheres e de seus papéis nas esferas familiares e sociais, principalmente com a inserção no mercado de trabalho: as mães operárias necessitavam deixar os filhos sob cuidados de outras pessoas (Oliveira, 1988).

Desse modo, o desenvolvimento infantil e o ambiente de aprendizado das crianças passam, em sua maioria, a ser transpassados da esfera doméstica para as creches. Sendo que as primeiras creches possuíam caráter assistencial, voltadas aos aspectos da higiene, cuidados físicos e alimentação, excluindo as ações educativas, a instituição era pensada para que as mães trabalhadoras e pobres pudessem ter um lugar para deixar os filhos enquanto trabalhavam (Oliveira, 1988).

Entretanto, a creche e a educação infantil só passam a ser compreendidas enquanto direito constitucional e mantidas pelo Poder Público a partir da promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB (Lei nº 9394/96) incluindo-a enquanto componente da educação escolar junto ao ensino fundamental e ensino médio. E somente em 2006 que a LDB antecipou a inserção dos alunos no Ensino Fundamental para os seis anos de idade e a Educação Infantil passa a atender as crianças de zero a cinco anos, divididas em dois níveis de ensino: as creches, ou entidades equivalentes, para crianças de até três anos de idade; as pré-escolas, para as crianças de 4 (quatro) a 5 (cinco) anos de idade. Delimitando, desse modo, o início e o fundamento do processo educacional, vinculando educar e cuidar deste tenra idade na proposta de atuação das creches e pré-escolas

Essa alteração na Lei foi pensada a partir do olhar para a criança enquanto sujeito de direitos (Oliveira & Miguel, 2012). No entanto, para que ocorra seu pleno desenvolvimento educacional é necessário compreender como é a atuação desses docentes, uma vez que essa modificação compôs mais um elemento na relação entre as atribuições da docência e a prática em sala de aula, em que passaram a responsabilidade de acompanhar o desenvolvimento da criança as educadoras. 

Em vista disso, a extrapolação das atribuições da docência em decorrência da relação apresentada entre a atuação de ser professora e o ser mulher, evidencia posições estruturais de modelos complexos de identificação estabelecidos socialmente diante de uma narrativa universalizante da feminilidade, acarretando a processos de mal-estar dessas profissionais. 

A partir dessas pontuações, o desenvolvimento desta pesquisa parte do reconhecimento da importância do trabalho das professoras do ensino infantil integral no processo de desenvolvimento socioemocional e constituição da subjetividade das crianças em sua primeira infância. Esta atuação é impactada perante o contexto e momento histórico em que as profissionais estão inseridas, tornando o exercício profissional atravessado pela possibilidade de sobrecarga decorrente das funções de cuidar e educar, misturadas e integradas à posição de maternagem. E o ponto de investigação e reflexão tem como objetivo geral compreender como a relação entre o papel materno e a atuação na educação infantil integral interferem no sofrimento psíquico das professoras do ensino infantil integral.  Considerando, para isto, suas rotinas de trabalho; tempo de atuação; formação e motivação da profissional acerca da atuação na área e sentido atribuído ao trabalho. 

Neste contexto, após a pesquisa ser submetida à apreciação ética no Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Municipal de São Caetano do Sul, e aprovada com o CAAE: 59745622.7.0000.5510, iniciou-se  a busca pelos resultados com os procedimentos de pesquisa compostos por entrevista semiestruturada realizada com 2 participantes (quadro 1), de modo presencial, com referencial de análise a partir da psicanálise no campo das relações e configurações de trabalho, desenvolvimento infantil e as relações de cuidado. Organizados por categorias temáticas de análise diante dos conteúdos emergentes das narrativas (quadro 2). 

Quadro 1. Caracterização das participantes

Nome Fictício

Idade

Tempo de docência

Carga horária de trabalho

Idade das crianças

Gardênia

46 anos

7 anos

Parcial 

2 a 3 anos

Magnólia

49 anos

9 anos

Integral

1 a 3 anos

Fonte: Elaborado pelas autoras em base da pesquisa (2023). 

 

Quadro 2. Categorias Temáticas de Análise

Categoria

Elementos da narrativa

Discussão proposta


O mundo do trabalho e a prática docente

Aspectos das formas de organização do trabalho e o modo como integrava as relações de sua atuação

As compreensões das noções internalizadas sobre escola; precariedade; sofrimento no cotidiano de ser professora e investimento e realização no trabalho.


Educar crianças: tarefa da escola ou de casa?


Presença do relato entre o papel da família e da escola

O papel das professoras de crianças pequenas e a semelhança com o papel de maternagem; a Psicologia do desenvolvimento infantil e a docência no ensino infantil integral.


A professora e a sala de aula


Relato da prática do cotidiano escolar

Cuidados com as crianças e o cansaço dessa atribuição; trabalho prescrito e real trabalho.

Fonte: Elaborado pelas autoras em base da pesquisa (2023).

 

Entre os resultados obtidos, reconheceu-se a convergência da existência do sofrimento presente diante da experiência do trabalho real (termo apresentado por Dejours (1986) para descrever a atividade que é desempenhada diante das mediações e condições concretas apresentadas no cotidiano, ou seja, é o trabalho tal como ele se apresenta na prática) frente a compreensão do trabalho docente nas diversas funções atribuídas às professoras: planejamento pedagógico; a relação com os estudantes e famílias; atividades extraclasses. Ou seja, as ações cotidianas que fogem do que havia sido proposto em um programa de aula, como lidar com o choro e agitação das crianças, por exemplo, é compreendido pelas participantes como atividades que extrapolam suas funções, ainda que façam parte da docência.  E é diante da narrativa dessa discrepância entre o que elas planejavam fazer e o que faziam na prática do cotidiano do trabalho que hipotetizamos que é o elemento central que lhes causa sofrimento, ainda que não denominados por elas.

Nessa direção, outro elemento apresentou essa “separação”: o desenvolvimento das relações com os estudantes e famílias.  Notou-se o uso das estratégias defensivas para lidar com as atribulações presentes nesta atuação, posto como função apartidária dentre os demais elementos, buscando minimizá-la para que seja possível a continuidade de seu trabalho, uma vez que o desenvolvimento de seu trabalho como professora é constituinte da subjetividade e as novas experiências de sensibilidade orientam o investimento psíquico e a realização neste campo. 

A Pedagogia como campo de atuação é apresentada pelas duas participantes como o elemento que delimita a implementação dos aspectos de cuidado, caracterizado como atividades técnicas e “amor metódico”, atribuindo os elementos da afetividade e maternagem para as esferas familiares, utilização das estratégias defensivas (Dejours, 1986) que afastam estes elementos presentes no cotidiano de seus trabalhos, porém são lidos como ainda mais atribuições, em meio a tantas que já possuem.  Assim como as dificuldades relacionadas com a família, considerando de baixa adesão o estabelecimento de contato com os pais quando consideram que a criança apresenta atrasos no desenvolvimento e solicitam encaminhamentos. 

Por fim, a relação entre o papel materno e a atuação na educação infantil integral interferem no sofrimento psíquico das professoras a partir do reconhecimento do uso das estratégias defensivas (Dejours, 1986) presentes no discurso de afastamento dos elementos da afetividade e cuidado com as crianças pequenas, apresentados como apartidários de suas funções e direcionados somente as esferas familiares. Orientando a concepção de um trabalho docente voltado às técnicas de cuidado do corpo e relações pedagógicas de ensino, ainda que sejam narrados episódios em que seguir metodicamente essas atribuições não foi possível. Foi percebido que, além disso, outras questões se mostraram mais emergentes, como as famílias e a coordenação.

Então, para onde esta pesquisa nos direciona?

Diante dos dados narrativos obtidos, compreende-se que houve contribuições para o reconhecimento dos atravessamentos da posição de cuidado atrelada historicamente às mulheres e o impacto na atuação com crianças pequenas, considerando que as relações sociais de trabalho são também relações sociais de gênero, assim como a lacuna existente entre o prescrito (termo apresentado por Dejours (1986) para denominar toda a tarefa que é definida antes da realização do trabalho, um planejamento antecipado da atividade) e o real oferta a possibilidade de mobilização subjetiva, evocando, no caso desta pesquisa, a dimensão narcísica e/ou a sublimação. 

Pois é no reconhecimento do trabalho enquanto constituinte da subjetividade que se pode pensar em estratégias de condições de trabalho e garantia de direitos que não levem as trabalhadoras a estados de adoecimento (situações que são observadas nos relatos de mal-estar docente em que o professor não tem condições de produzir novas alternativas diante da sua realidade no trabalho). 

Desse modo, propõe-se intervenções no âmbito das políticas públicas de educação infantil pautadas nas metas do Plano Nacional de Educação (PNE) entre 2014 e 2024 (Bof et al.,2023), pleiteando a revisão do número de alunos por classe; quantidade de professoras e auxiliares em sala de aula; programas de formação continuada; revisão e ampliação dos currículos de formação inicial em pedagogia, ofertando caminhos de valorização dos profissionais e investimento em saúde mental do professorado. Justamente por considerar a saúde como o apresentado por Dejours (1986) enquanto o bem-estar psíquico diante da liberdade de adaptação: é a liberdade de se agir individual e coletivamente sobre a organização do trabalho, ou seja, sobre o conteúdo do trabalho, a divisão das tarefas, a divisão dos homens e as relações que mantêm entre si.

Estudos como este, que tem como objetivo reconhecer a presença de tensões e contradições presentes na prática educativa em relação a posição de cuidado historicamente atribuída às mulheres, apontando para constituição da subjetividade pelo trabalho, contribui  para a quebra de discursos universalizantes de atribuição dos cuidados às mulheres e dissociado a prática pedagógica de crianças nestas faixas etária, alargando a compreensão de que é também nessas ações e cuidados exercidos pelas professoras que ao reconhecer os desejos destes alunos, ocorrerá a inserção da criança no mundo simbólico, permitindo constituir-se enquanto sujeito introduzido por meio do uso da linguagem, não restringindo esta posição somente à família. 

Concluímos que as contribuições de explorar tal temática se fazem a partir da discussão sobre as possibilidades de atuação com crianças pequenas, considerando que o cuidado é elemento pertencente e indissociável da prática pedagógica nesta etapa da vida, bem como apontamentos sobre as condições de trabalho na qual estas mulheres trabalhadoras estão inseridas e os impactos em sua constituição subjetiva. Viabilizando novas propostas pedagógicas, não somente entre as dinâmicas internas da classe (como as atividades desenvolvidas com os alunos), mas também espaços de coloração entre docentes e gestão, garantido o espaço publico para o debate e articulação dos sentidos atribuídos pelas trabalhadoras diante de suas funções, considerando o que é exposto por Dejours (1986) como: A saúde é quando ter esperança é permitido [...] O que faz as pessoas viverem é, antes de tudo, seu desejo. 

Recomendamos para os próximos estudos a ampliação do convite a pesquisa, buscando maior número de participantes, possibilitando o agrupamento por segmento de ano escolar para análises dos campos temáticos; aprofundamento na existência de diferenças entre o cuidado de crianças do ensino público e do ensino particular. Assim, será possível fortalecer dados neste campo de pesquisa, ofertando maior literatura nesta temática e potencializando políticas públicas de educação em que leve em conta o desenvolvimento integral dos estudantes, de acordo com suas necessidades psíquicas e condições de trabalho docentes. 

 

Referências Bibliográficas

______. LDB. Lei 9394/96 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.  Disponível em: https://www.planalto.com.br

BOF, Alvana Maria; GUIMARÃES RODRIGUES, Clarissa; DE OLIVEIRA, Adolfo Samuel. Melhoria da qualidade da educação básica e superação das desigualdades educacionais. Cadernos de Estudos e Pesquisas em Políticas Educacionais, v. 8, 6 jul. 2023. Disponível em: https://doi.org/10.24109/9786558011125.ceppe.v8.5767

BRASIL. RESOLUÇÃO CNS Nº 510, DE 07 DE ABRIL DE 2016, Resolução n.º 510. 2016. Disponível em: https://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2016/Reso510.pdf

 

DEJOURS, Christophe. Por um novo Conceito de Saúde. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, v. 14, n. 54, 1986. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/5817635/mod_resource/content/2/[Dejours]_Por%20um%20novo%20conceito%20de%20Saúde.pdf.

 

OLIVEIRA, Débora Regina de; MIGUEL, Ana Silvia Bergantini. A nova concepção de creche pós-LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – Lei nº 9.394/96). Revista Fafibe On-Line, v. 5, n. 5, dez. 2012. Disponível em: 

https://www.unifafibe.com.br/revistasonline/arquivos/revistafafibeonline/sumario/21/21112012211307.pdf.

 

OLIVEIRA, Zilma de Moraes Ramos de. A creche no Brasil: mapeamento de uma trajetória. REVISTA DA FACULDADE DE EDUCAÇÃO, v. 14, n. 1, p. 43-52, 1988. Disponível em: http://educa.fcc.org.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010225551988000100004&lng=pt&tlng=pt.

SCOTT, Ana Silva. O caleidoscópio dos arranjos familiares. In: SCOTT, Ana Silva. Nova história das mulheres no Brasil. São Paulo: Editora Contexto, 2012. Disponível em: https://www.google.com.br/books/edition/Nova_história_das_mulheres_no_Brasil/ACmXBgAAQBAJ?hl=pt-BR&gbpv=1

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