Ir direto para menu de acessibilidade.

Nós usamos cookies para melhorar sua experiência de navegação no portal. Ao utilizar o ufabc.edu.br, você concorda com a política de monitoramento de cookies.

Para ter mais informações como isso é feito, acesse a Norma de uso de cookies nos Portais da UFABC.

ACEITAR
Página inicial > Divulgação Científica > PesquisABC > Edição nº 37 - Outubro de 2024 > Trabalho Doméstico e Pandemia: Reflexões Sobre a Categoria e as Vivências de Mulheres Negras
Início do conteúdo da página

Trabalho Doméstico e Pandemia: Reflexões Sobre a Categoria e as Vivências de Mulheres Negras

imagem ilustrativa

A Revista Eletrônica PesquisABC possui o seguinte registro ISSN: 2675-1461

Luiza Mayare Reis Soares*

a Graduanda no Bacharelado em Ciências e Humanidades pela Universidade Federal do ABC (UFABC) e orientada pela professora Regimeire Maciel (UFABC).

 

Resumo: A pandemia da COVID-19 provocou consequências inimagináveis não apenas de ordem epidemiológica e de saúde pública, mas também tem trazido impactos sociais, econômicos e políticos para toda a população brasileira. No entanto, pode-se observar que grupos mais vulneráveis, como a população feminina, negra e de baixa renda, ficaram ainda mais expostas tanto à contaminação pelo vírus quanto ao desemprego, reduções salariais, entre outros problemas. Tendo em vista as relações de trabalho, o histórico opressor do país e a interseccionalidade de raça e gênero, foi proposto uma análise das condições de trabalho das empregadas domésticas no Brasil no contexto pandêmico do Coronavírus. A partir de um breve levantamento de dados, este trabalho de Iniciação Cientifica fomentado pela Universidade Federal do ABC, discute a luta diária pela valorização e visibilidade das profissões, além das relações histórico-culturais que permeiam a realidade das domésticas durante a pandemia.

Palavras-chave:  TRABALHO DOMÉSTICO; MULHERES NEGRAS; PANDEMIA.

 

Abstract: The COVID-19 pandemic has caused unimaginable consequences not only in terms of epidemiology and public health but has also brought social, economic, and political impacts to the entire Brazilian population. However, it can be observed that more vulnerable groups, such as the female, black, and low-income population, have become even more exposed to virus contamination, unemployment, salary reductions, and other problems. Considering the work relationships, the oppressive historical context of the country, and the intersectionality of race and gender, an analysis of the working conditions of domestic workers in Brazil was proposed in the pandemic context of the Coronavirus. Based on a brief data survey, this Scientific Initiation project sponsored by the Federal University of ABC discusses the daily struggle for the appreciation and visibility of these professions, as well as the historical and cultural relationships that permeate the reality of domestic workers during the pandemic.

Keywords: DOMESTIC WORK; BLACK WOMEN; PANDEMIC

 

Introdução

Desde o surgimento da COVID-19, vários países e regiões do mundo passam por uma crise sanitária que já resultou em milhares de perdas humanas. O Brasil apresentou em 26 de fevereiro de 2020 a primeira notificação de um caso confirmado de COVID-19 e até a data de 30 de abril de 2022, registraram 513.543.687 casos e 663.497 óbitos pela doença. Assim, o Brasil ocupa o terceiro lugar no ranking de países com maior número de casos acumulados, ficando atrás apenas dos Estados Unidos e da Índia (BRASIL, 2022). Por esta razão, no início da pandemia, foram tomadas medidas emergenciais no combate ao vírus e ao colapso da saúde mundial que também influenciaram em questões econômicas e sociais. Dentre elas, o isolamento e distanciamento social, a frequente higienização das mãos e a utilização de máscaras foram ações amplamente incentivadas. No entanto, é possível analisar que uma parcela da população brasileira não pôde seguir, plenamente, todos esses alertas devido às desigualdades sociais a que estes indivíduos estão submetidos. Tais desigualdades, segundo Silva e colaboradores (2020), impactaram grupos mais vulneráveis durante a pandemia, especialmente a população negra. Isso ocorre em diversas perspectivas como maior exposição à doença e dificuldades na geração de renda, pois essa população é mais numerosa entre os trabalhadores(as) informais, terceirizados, trabalhadores(as) domésticos(as) e desempregados(as). Para Santos (2018), as disparidades vivenciadas pela população negra são uma herança histórica do período escravocrata e do fortalecimento das teorias racistas até os dias de hoje. 

Ao considerarmos os trabalhos historicamente exercidos por pessoas negras no país, especialmente mulheres, podemos nos referir ao trabalho doméstico como uma ocupação ligada às funções de cuidado, algo bastante pautado na pandemia. Entende-se o trabalho doméstico como a realização de atividades do cuidado com o lar, dentre eles a limpeza, arrumação, preparo das refeições, cuidado com as roupas e, com frequência, o cuidado de crianças, idosos e animais domésticos, podendo ou não ser remunerado (SANCHES, 2009). Dessa maneira, a necessidade de nos cuidarmos e cuidarmos dos outros para a sobrevivência de uma população foi, e ainda é, algo presente no pensamento popular. A parcela de trabalhadoras domésticas equivale a cerca de 6 milhões de mulheres no Brasil, ou seja, 10% das mulheres brancas ocupadas e 18,6% das mulheres negras ocupadas, totalizando 15% das trabalhadoras do país (PINHEIRO, 2020). Outro aspecto importante é que estudos demonstram que o perfil das empregadas domésticas vem envelhecendo, ou seja, há uma redução significativa de jovens nesta categoria de trabalho. Diferentemente de décadas atrás, nas quais era mais comum o recrutamento de jovens ou adolescentes (BRITES; PICANÇO, 2014). Tal modalidade de emprego, levando em consideração a interseccionalidade entre gênero e raça, carrega diversas peculiaridades, desde o abuso, assédio moral e sexual, desvalorização e estigmatização da atividade profissional, sexualização, jornadas exaustivas, mal remuneração, dentre outros (PINHEIRO, 2020). 

A vulnerabilidade da função fica ainda mais explícita com a falta de auxílios aos trabalhadores domésticos e em sua maioria à precariedade de regulamentação. Não se pode negar que entre 1993 e 2011 muitos avanços foram feitos em relação à categoria, como a redução da participação quando muito jovens, o aumento daquelas que possuem carteira assinada e a diminuição das extensas jornadas de trabalho. Mas até o presente momento identifica-se na profissão a baixa formalização, poucos reconhecimentos por parte do governo, além do pouco incentivo à assinatura da carteira de trabalho, visto que os custos envolvidos com pagamento de Fundo de Garantia por Tempo de Serviço aumentariam em 8,0% para o empregador (LIMA; PRATES, 2019). Ademais, a reprodução do pensamento de que, remunerado ou não, não será um trabalho formal pois reproduz o cuidado feminino, contribui para sua desvalorização (SOLANGE, 2020 p. 885). Tais aspectos, sobretudo a informalidade, afastam a profissão das possibilidades do acesso à proteção social garantida em outras funções, como o seguro-desemprego caso sejam demitidas, auxílio-doença caso sejam acometidas por uma doença, dentre outros. 

O Brasil como o último país do Ocidente a abolir a escravidão perpetua as dificuldades de reparação social e a história do colonialismo. Isso se mostra na luta por direitos e condições de trabalho que percorreram muitos anos, tal que apenas em 2013 foi aprovada a Proposta de Emenda Constitucional nº 478 de 2010, conhecida popularmente como a “PEC das Domésticas”. A PEC estabelece normas e requisitos para a formação do vínculo empregatício, que antes favoreciam os empregadores, procurando equiparar o trabalho doméstico às demais categorias (NETO, 2014). Entretanto, apenas em 2015 ocorreu a regulamentação completa da função de trabalho doméstico por meio da publicação da Lei Complementar nº 150. Ainda em 2018, cerca de 3 anos após a publicação da Lei se fez necessário uma retificação estendendo os direitos dos trabalhadores, dentre eles pode-se citar: o descanso semanal remunerado por no mínimo um dia completo (24 horas), a garantia no salário mínimo, a liberdade sindical, direito à negociação coletiva, entre outros. (ANDRADE; TEODORO, 2020). 

Ao estudarmos este grupo significativo no contexto pandêmico da COVID-19 identifica-se que as recomendações de isolamento e distanciamento são muito difíceis de serem seguidas, visto que estas mulheres trabalham no interior de residências diferentes das suas. O que demanda um contato com pessoas que não fazem parte do seu ciclo familiar ou de seu convívio pessoal, utilizando objetos que não são seus e que não possuem controle do ambiente em que se encontram (PINHEIRO, 2020). Logo, estas mesmas trabalhadoras são expostas a inúmeros riscos de contaminação pelo vírus, além da exposição no transporte público que utilizam para chegar até a residência em que trabalham. Ademais, levando em consideração o envelhecimento considerável das mulheres que ocupam a função pode, consequentemente, aumentar os riscos à saúde de trabalhadoras que durante a pandemia não foram dispensadas do seu trabalho por serem consideradas essenciais e ainda, possivelmente pertencerem ao grupo de risco em relação à contaminação (BRITES; PICANÇO, 2014). 

Deste modo, se faz importante analisar as relações do trabalho doméstico no Brasil por meio do contexto de pandemia da Covid-19 no Brasil a fim de entender e explorar suas dificuldades, vulnerabilidades e pontos de vista, valorizando suas vozes e vivências. O levantamento deste debate pode contribuir também para a visibilidade da categoria e dessas mulheres negras que historicamente foram colocadas em locais subalternos da sociedade em decorrência do machismo e do racismo que estruturam a cultura brasileira.

Metodologia

O trabalho é construído a partir de uma revisão bibliográfica acerca do trabalho doméstico no Brasil, expondo o perfil das pessoas que desempenham essa função, as questões culturais no país e o papel social dessa atividade laboral. Dentre os autores utilizados como base de pesquisa, pode-se nomear Ian Prates (2019) e Solange Sanches (2009). 

Na segunda fase, foi feita a reflexão sobre a situação desse trabalho durante a pandemia de COVID-19. Para isso, foram utilizados dados do Ministério da Saúde sobre a pandemia com a variável de cor/raça e gênero e dados atuais sobre o trabalho doméstico obtidos pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e pelo Ministério do Trabalho. Além disso, realizou-se um breve levantamento de dados, pesquisas e estudos que debatem a questão da mulher negra trabalhadora doméstica relacionando-a com debates socioculturais e históricos abordados neste trabalho.

Fundamentação Teórica

O sistema econômico brasileiro foi por muito tempo baseado na exploração da mão de obra da população negra. Este perfil de pessoas dentro de um modelo escravista de sociedade, são definidos como uma propriedade e um aparelho gerador de trabalho lucrativo (DAVIS, 2016). Logo a caracterização do escravo era uma peça chave para produção e circulação de riquezas do país e o tráfico assume-se como umas das principais ferramentas de manutenção deste sistema. Por consequência dos altos números de africanos traficados, a presença demográfica de negros no território brasileiro se tornou significantemente maior comparado a outros grupos étnicos. Isso acaba por se tornar um problema para o Império, considerando as dificuldades de controle tanto no âmbito do trabalho quanto social (JACINO, 2006). 

Mais tarde em 1871 em um contexto da Lei do Ventre Livre, não nasceriam mais escravos no país, ao menos de maneira legal, em conjunto dos movimentos abolicionistas e processos emancipatórios percebe-se o início da crise da utilização da mão de obra escrava (TELLES, 2011). Jacino (2006), traz uma hipótese de que ao longo dos séculos e das ações que favoreceram o fim do modelo escravista cresceram as lógicas capitalistas de exército de reserva de mão de obra e também a criação de uma “cultura do ócio” que teria dificultado incorporação do negro no mercado de trabalho de forma efetiva. De acordo com ele, acreditava-se que no momento em que o negro deixasse de ser escravo não iria trabalhar, por não reconhecer os conceitos de acumulação de renda, por ter uma mentalidade limitada e indisciplina natural, mesmo que muitos já estivessem desempenhando atividades ocupacionais, mas sem reconhecimento. Neste momento, o país integrando um sistema economicamente capitalista, necessita de trabalhadores que atendam suas “necessidades” de reserva de mão de obra e principalmente branca, materializada na vinda de imigrantes para exercer atividades mais importantes para a economia brasileira. Estes seriam compreendidos como os grupos de brancos estrangeiros que ocuparam as posições dos negros livres no mercado de trabalho, mas que nunca foram reconhecidos como classe trabalhadora (GONZALES, 2020). 

Havia um viés social na transformação de escravos em trabalhadores livres explícita na transição entre a ruína do trabalho escravo e a substituição pelo trabalho de imigrantes como forma de preencher uma lacuna presente nas lavouras. De acordo com Telles (2011, p. 331) isso contribuiu para que, especialmente São Paulo, tivesse um projeto econômico e social para receber ao mesmo tempo uma classe trabalhadora composta por: libertos, migrantes, imigrantes e agentes do trabalho livre - todos com o objetivo de servir às classes médias urbanizadas. No entanto, pode-se interpretar que os diversos incentivos imigratórios, com a finalidade de residir e trabalhar no Brasil, foi um processo de embranquecimento da sociedade que contribuíram para o desempenho na criação da identidade nacional pós-abolição. Essa identidade, baseada em miscigenação compulsória, na violência, teorias eugenistas, entre outros, procuravam apagar os diversos problemas sociais gerados tanto na escravidão quando no período pós-escravidão (SANTOS, 2020).  Essa época de grandes movimentos migratórios vindos ao Brasil fortaleceu as ideologias de superioridade da raça branca e acabaram por influenciar, por volta de 1930 a elaboração do mito da democracia racial. Para Lélia Gonzalez (2020), estas ideologias acarretaram também a uma discriminação ocupacional por meio da concretização da ideia de “igualdade” e de que todos seriam iguais “perante a lei”. Ela argumenta que há um objetivo por trás disso era que: 

[...] o grupo racial dominante justifica sua indiferença e sua ignorância em relação ao grupo negro. Se o negro não ascendeu socialmente e não participa com maior efetividade nos processos políticos, sociais, econômicos e culturais, o único culpado é ele próprio. Dadas as suas características de ‘preguiça’, ‘irresponsabilidade’, ‘alcoolismo’, ‘infantilidade’ etc. (GONZALEZ, 2020, n.p).

 

Logo, já se entende qual a ilustração dada a população negra a partir do interesse das classes médias. Há uma crise e uma necessidade de reestruturação do modelo econômico brasileiro, mesmo que livres, a população negra não será integrada neste processo, mas sim utilizada de maneira conveniente para benefícios capitalistas desta classe. No entanto, ao analisarmos o papel das mulheres negras neste processo, podemos considerar pontos de problemáticas que vão além dos já tratados acima. 

Angela Davis, em sua obra “Mulheres, Raça e Classe” (2016), apresenta uma visão um pouco mais específica da atuação das mulheres negras no modelo escravista estadunidense, mas que ultrapassam limites geográficos. A filósofa afirma que as mulheres negras, desde o início, eram exploradas de maneiras diferentes a partir da conveniência, ou seja, eram desprovidas de gênero enquanto dessem lucro aos senhores trabalhando nas lavouras, mas no momento de puni-las eram violadas e limitadas a uma condição de fêmeas. Essas relações não se diferem muito do cenário brasileiro pois aquelas traficadas do continente africado além de realizarem atividades nas lavouras, também estavam presentes nas casas dos senhores, principalmente como amas de leite e mucamas. Embora elas usufruem de falsos benefícios oriundos de ideologias da feminilidade, a imagem de escrava sempre esteve vinculada à trabalhadora doméstica (TEIXEIRA, 2021). 

 Estas representações são facilmente exemplificadas na literatura e na mídia ao longo dos anos, como a de “mãe preta” uma mulher gentil, gorda e que tem funções de cozinhar e cuidar vista na personagem da Tia Nastácia do Sítio do Pica Pau Amarelo (SANTOS, 2020). Esse tipo de personagem materializa o racismo como um complexo imaginário social que, segundo Silvio Almeida (2020) é fortalecido pelas telenovelas, meios de comunicação e indústria cultural. Juliana Teixeira (2021) também traz um outro lado das domésticas escravizadas, a sexualização, em que determinadas características físicas definiriam se ela era mais apropriada a se tornar uma escrava doméstica desde muito jovem. Assim as mulheres negras, seriam exploradas sexualmente e de forma laboral, praticamente como um objetivo de consumo dos senhores e naturalizando uma relação de servidão para além do ambiente do campo e das lavouras. Dessa atuação da mulher negra no meio laboral historicamente começa de maneira extremamente fragilizada passando por problemas econômicos e de baixa formação escolar. Uma pesquisa (1983) citada por Lélia Gonzalez (2020) descreve que a maioria das mulheres negras de baixa renda começam a trabalhar na faixa de 8 e 9 anos de idade principalmente em “casas de família”, ou seja, como empregadas domésticas. 

Levando isso em consideração, é possível entender muitas situações essas mulheres acabam por assumir uma posição de sustento da família, proporcionada também pela realidade violenta e de encarceramento em que os homens negros estão expostos (ABREU, 2021). Assim, ao somar as vulnerabilidades raciais, de gênero, educacionais, socioeconômicas, dentre outras, elas ficam ainda mais propensas e limitadas a ocupar posições de subempregos repletas de violações trabalhistas. Ainda, a imagem social da mulher negra como serva é reproduzida nos empregos domésticos ao realizar as atividades de suas próprias residências, possuem uma segunda jornada do cuidado com o outro (PINHEIRO; TOKARSKI; VASCONCELOS, 2020).

Em 2018, a classe de diaristas correspondia a cerca de 2,5 milhões de mulheres que se dividem entre vários lares, abrindo brecha para a não exigência legal de vínculos empregatícios, pois segundo a Lei Complementar no 150/2015 esta exigência só se dá em situação que a atuação no mesmo domicílio seja feita por três ou mais dias na semana.  E no contexto da pandemia os impactos sociais e econômicos do distanciamento social é expandido para os trabalhadores autônomos e que dependem de atividades diárias para que recebam seu pagamento (PINHEIRO; TOKARSKI; VASCONCELOS, 2020). Por exemplo, de acordo com a Pesquisa Nacional por amostra de domicílio Covid 19 (IBGE) em 2020 apenas 2,6% dos trabalhadores domésticos (homens e mulheres) sem carteira assinada foram afastados do trabalho devido ao distanciamento social, decisão importante considerando o alto risco de exposição. Assim, ao refletir o papel social das mulheres negras no meio laboral e a sua grande atuação no desempenho de trabalho doméstico remunerado, é possível identificar uma desigualdade mais impactante durante a pandemia para a população vulnerável socialmente e economicamente.

Dados Sobre o Tema

A informalidade do trabalho doméstico é uma realidade comum no contexto brasileiro levando muitas vezes esta categoria à margem das leis trabalhistas e previdenciárias e o enfrentamento de uma série de desafios e injustiças. Dados organizados pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE, 2021), demonstram que em 2020 75% (cerca de 3,4 milhões) das domésticas brasileiras se encontravam sem carteira assinada e apenas 35% contribuem para a previdência social.  O DIEESE (2021) também expõe que o rendimento médio mensal das trabalhadoras domésticas na região sudeste caiu de R$1.052,00 em 2019 para R$973,00 em 2020. Quando se trata de domésticas informais o rendimento cai em 40% em relação àquelas de vínculos formais e ainda, quando são trabalhadoras negras a média é 15% de redução dos rendimentos. Observa-se então que a ausência do registro em carteira, em geral, resulta em remunerações abaixo do salário mínimo estipulado por lei, como o piso salarial da categoria, gerando uma significativa diferença salarial entre aquelas formalidades e não formalizadas. Em complemento, há um aumento, também, entre 2019 e 2020, em relação à porcentagem das domésticas de desempenham o papel de “chefes de família”, como demonstrado na imagem abaixo: 

figura 1 luiza mayare

Figura 1-  IBGE - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua). Dados do 4º trimestre de 2019 e 2020. Elaboração DIESSE. Disponível em:< https://www.dieese.org.br/outraspublicacoes/2021/trabalhoDomestico.pdf>

 

A junção entre estes últimos fatores podem corroborar também para um impacto econômico, não apenas para aquela doméstica mas também para a família que ela necessita “chefiar”, incluindo o apoio financeiro para atendimento das necessidades do ciclo familiar. 

Outro aspecto a se levantar é a diferença do perfil de quem trabalha como empregada doméstica e de quem contrata este tipo de serviço.  Um estudo intitulado “A contração de trabalhadores domésticos durante a pandemia da covid-19” realizado entre maio e junho de 2020 trouxe características do contratante responsável pelas empregadas domésticas, são elas: 75,9%se declararam brancos, 95% possuíam ensino superior completo ou mais escolaridade e 61,9% possuíam renda domiciliar acima de 10 salários mínimos (acima de R$10.450,00) (MYRRHA; SILVA; QUEIROZ; SALES, 2022). Tal realidade é muito diferente do perfil de trabalhadoras formado em sua maioria por mulheres negras que possuem a inserção laboral extremamente fragilizada a partir de contextos históricos sociais marcados por dificuldades econômicas e baixa formação profissional e escolar. 

Essa mesma pesquisa também demonstrou que dentre as ações mais comuns tomadas pelos contratantes em relação à trabalhadora doméstica durante a pandemia foram: (1) 49,7% mantiveram da relação do trabalho e remuneração, com ou sem suspensão do contrato e afastamento da trabalhadora do ambiente de trabalho; (2) 26,2% mantiveram a relação de trabalho, com a mesma remuneração e continuidade total ou parcial das atividades da trabalhadora; e (3) 12,6%  não continuaram à contratar o serviço ou demitiram a trabalhadora (MYRRHA; SILVA; QUEIROZ; SALES, 2022). A partir disso, é possível interpretar que a maioria dos contratantes prezam pela manutenção do trabalho da doméstica de maneira segura. No entanto, a Organização Internacional do Trabalho afirma que 70,4% das trabalhadoras domésticas latino-americanas, em especial o Brasil, foram afetadas pelas necessidades do isolamento social, seja pela diminuição de sua atividade econômica, desemprego, redução das horas trabalhadas ou perda de salários (MULHERES, 2020).

Os autores desta pesquisa ressaltam a importância de considerar que tais informações foram prestadas pelos contratantes e há possibilidades de o preenchimento ter sido realizado com base em preceitos morais, ou seja, o que os empregadores acreditam que seja certo, mas não necessariamente aquilo que é feito na realidade (MYRRHA; SILVA; QUEIROZ; SALES, 2022). Outros aspectos que contradizem estes dados são debatidos pela Central Única dos Trabalhadores em colaboração com Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (FENATRAD) em que nos primeiros meses da pandemia aumentaram cerca de 60% as denúncias de abusos e falta de pagamentos por parte dos contratantes além de denúncias relacionadas à cárcere privado, podendo se configurar em trabalhos em situações análogas à escravidão (ROCHA, 2020).  

Quando se fala em trabalhadores em condições análogas à escravidão é possível identificar também um aumento em resgates durante o período da pandemia no Brasil. Em 2020 foram 943 trabalhadores encontrados pela inspeção do trabalho, já em 2021 foram 1.959 enquanto em 2022 foram 2.587. Dentre eles havia em cada ano, respectivamente, 3, 30 e 30 trabalhadores que desempenhavam atividade laboral de “serviços domésticos”, segundo (BRASIL, 2023). Dentre os fatores que levam a este tipo de situação, se destaca a falta de controle de jornadas de trabalho, em especial de trabalhadoras que dormem na casa de seus contratantes. 

Relatos de empregadas organizados por Tanure (2022) apresentam circunstância das mais variadas como: de dormir na casa dos empregadores e isso ocasionar no afastamento de sua vida particular e familiares, desrespeito e total vulnerabilidade; ou até mesmo da recusa das empregadas que trabalhavam a muitos anos na mesma residência e ao recusar dormir no trabalho foram imediatamente demitidas. Estes comportamentos e situações que as trabalhadoras acabam por serem obrigadas a passar mostra as raízes da origem da atividade laboral sustentada pela obrigatoriedade de servir, pela transformação da mulher negra em um bem privado do empregador. 

Tanure (2022) em “Que horas elas voltam? - Relatos do Trabalho escravo doméstico no cenário da pandemia” afirma que estes acontecimentos não estão restritos ao momento da pandemia, mas que, na verdade, o olhar para isso mudou. Agora se questiona quem é aquela pessoa que trabalha na casa de um vizinho, quais transportes uma empregada precisa chegar ao destino do seu trabalho e quantos locais esta mulher está trabalhando.

Discussão e Conclusão

A história econômica do Brasil está fortemente ligada à exploração da mão de obra negra, que foi escravizada por séculos. Apesar do fim da escravidão e dos esforços abolicionistas, a população negra ainda enfrenta dificuldades para ser integrada ao mercado de trabalho de forma igualitária, especialmente quando se pensa na divisão sexual do trabalho e os atravessamentos de gênero, raça e classe. Isso também se deve em parte à criação de uma "cultura do ócio" que teria dificultado sua incorporação no mercado de trabalho, bem como à discriminação ocupacional e ideologias de superioridade da raça branca que influenciaram a elaboração do mito da democracia racial no Brasil. A necessidade de reestruturação do modelo econômico brasileiro após a abolição foi feita de forma conveniente para benefícios capitalistas das classes médias, o que contribuiu para a exclusão da população negra.

A imagem da doméstica no Brasil foi construída a partir de uma série de fatores históricos, culturais e sociais que moldaram a percepção da sociedade em relação a essa profissão. Essa estigmatização do trabalho doméstico carrega uma herança principalmente escravocrata que relegava os negros a trabalhos subalternos e domésticos. Ainda, a ausência de direitos trabalhistas básicos, como jornada de trabalho regulamentada, salário mínimo, férias remuneradas e outros benefícios, perpetua a ideia de que as empregadas domésticas são trabalhadoras de segunda classe, sem direito a uma proteção legal. A compreensão desses fatos históricos é importante para uma reflexão crítica sobre as desigualdades sociais e a luta por um país mais justo e igualitário para todas as pessoas.

Este arcabouço teórico traz uma base para compreender a manutenção de características de séculos anteriores nos tempos atuais. O perfil de quem é visto como “proprietário”, ou atualmente “empregador”, permanece sendo uma classe social branca, com maior poder econômico e com acesso privilegiado à educação e emprego. Isso exemplifica a manutenção de um status quo, que torna natural a posição de mulheres negras desempenhando trabalhos domésticos sem nenhuma proteção ou garantia, pois isso faz parte da estrutura social brasileira. A não formalidade do trabalho também contribui para a desvalorização e a continuidade de baixa mobilidade social de mulheres negras inseridas neste contexto do trabalho. 

Além disso, a facilidade com que é feita essa quebra de vínculo com a trabalhadora, seja ela de carteira assinada, mas em especial àquelas sem carteira assinada e que desempenham atividades como diarista, mostra a fragilidade da relação de empregado e empregador. Um fator que colabora para a não aceitação dessa profissão como digna ou até mesmo como de fato uma profissão que possui direitos. Como consequência, dificulta a luta das trabalhadoras por segurança e pela busca de proteção e reconhecimento. 

Um importante ponto levantado durante a pandemia foi a vivência de trabalhadores em condições análogas à escravidão que se trata de algo carregado do período escravocrata brasileiro para os dias atuais. É identificado um aumento considerável da divulgação de casos de trabalhadoras resgatadas nestas condições, mas é preciso pensar que essa problemática sempre esteve presente para as domésticas. A questão é que durante a pandemia, assim como a percepção de desigualdades, foi acentuada e trazida para debate. Durante a pandemia o cuidado com o próximo e a preocupação com as condições de vida e de trabalho do empregado podem ter colaborado para então a não normalização de trabalhos precários e o aumento de denúncias e fiscalizações. No entanto, não é possível simplificar ou restringir essas ações aos momentos como a pandemia, mas sim, investir ainda mais em políticas de combate e responsabilização de tais práticas.

Diante da complexa realidade exposta, é evidente que o trabalho doméstico no Brasil carrega consigo uma herança histórica de desigualdade racial, de gênero e social. As mulheres negras que desempenham essa atividade enfrentam uma série de obstáculos sociais, desde a falta de reconhecimento até a ausência da garantia dos direitos trabalhistas básicos. A pandemia da Covid-19 deixou ainda mais visíveis as vulnerabilidades desse grupo, expondo as dificuldades de seguir as restrições necessárias como isolamento social e distanciamento sem o impacto nos seus rendimentos e vínculos trabalhistas. 

A invisibilidade e a desvalorização do trabalho doméstico perpetuam estereótipos e preconceitos oriundos da história do Brasil. Por isso é necessário considerar estes debates para promoção de mudanças significativas na forma como a profissão é vista e tratada pela sociedade, desde ampliação de políticas de inclusão social, combate às desigualdades raciais e de gênero e de garantia dos direitos trabalhistas já conquistados pela categoria.

Referências

  1. ABREU, A. K. O Trabalho doméstico remunerado: um espaço racializado. In: Entre Relações de Cuidado e Vivência de Vulnerabilidade: Dilemas e Desafios para o Trabalho Doméstico e de cuidados remunerados no Brasil. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), 2021.
  2. ALMEIDA, S. de. Racismo Estrutural. Coleção Feminismos Plurais. São Paulo: Editora Jandaíra, 2020.
  3. ANDRADE, D. E. C. V; TEODORO, M. C. M. A colonialidade do poder na perspectiva da interseccionalidade de raça e gênero: análise do caso das empregadas domésticas no Brasil." Revista Brasileira de Políticas Públicas, v. 10, n. 2, p. 564-585, 2020.
  4. BRASIL. Boletim Epidemiológico Especial 111. Doença pelo Novo Coronavírus - COVID-19. Semana Epidemiológica 17- 24/4 a 30/4/22. Secretaria de Vigilância em Saúde | Ministério da Saúde. Brasília, 2022.
  5. BRASIL. RADAR SIT. Painel de Informações e Estatística de Inspeção do Trabalho no Brasil. Secretaria de Inspeção do Trabalho. Disponível em: <https://sit.trabalho.gov.br/radar/#>. Acesso em: 1 ago. 2023.
  6. BRITES, J; PICANÇO, F. O emprego doméstico no Brasil em números, tensões e contradições: alguns achados de pesquisas. Revista Latino-americana de estudos do trabalho, v. 19, n. 31, p. 131-158, 2014.
  7. DAVIS, A. Mulheres, raça e classe. Boitempo Editorial, 2016.
  8. DIEESE. Trabalho doméstico remunerado. 2016. Disponível em: <https://www.dieese.org.br/outraspublicacoes/2021/trabalhoDomestico.pdf>. Acesso em: 02 set. 2023.
  9. GONZALEZ, L. Por um feminismo afro-latino-americano. Editora Schwarcz-Companhia das Letras, 2020.
  10. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Pesquisa nacional por amostra de domicílio Covid19. 2021. Disponível em: https://covid19.ibge.gov.br.
  11. JACINO, R. O trabalho do negro livre na cidade de São Paulo 1872-1890. 2006. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo.
  12. MYRRHA, L. J. D.; SILVA, P. S.; QUEIROZ, S. N.; DIAS SALES, A. P. Impactos Da Pandemia Da Covid-19 No Emprego Doméstico: Uma Análise Das Ações Tomadas Pelos Contratantes Durante A Primeira Onda. Revista da ABET, v. 21, n. 1, 2022. DOI: 10.22478/ufpb.1676-4439.2022v21n1.54665. Disponível em: ><https://periodicos.ufpb.br/index.php/abet/article/view/54665. Acesso em: 01 set. 2023.
  13. LIMA, M; PRATES, I. Emprego doméstico e mudança social Reprodução e heterogeneidade na base da estrutura ocupacional brasileira. Tempo social, v. 31, n. 2, p. 149-172, 2019.
  14. MULHERES, ONU. Trabalhadoras domésticas remuneradas na América Latina e no Caribe frente à crise do Covid-19. BRIEF. América Latina, n. 1.1, p. 1-19, 2020.
  15. NETO, F. S. A. Abrem-se as portas da senzala? Análise da dinâmica da ação coletiva das filiadas ao sindicato das empregadas domésticas de João Pessoa-PB. 2014. Dissertação (Mestrado em Administração) - Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2014.
  16. PINHEIRO, L; TOKARSKI, C; VASCONCELOS, M. Vulnerabilidades das trabalhadoras domésticas no contexto da pandemia de Covid-19 no Brasil. Brasília: Ipea, 2020. (Nota Técnica, n. 75).
  17. ROCHA, R. De cárcere privado a falta de pagamentos, o drama das domésticas na pandemia. Site Central Única dos Trabalhadores - CUT, jul. 2023. Disponível em: <https://www.cut.org.br/noticias/de-carcere-privado-a-falta-de-pagamentos-o-drama-das-domesticas-na-pandemia-d6a5>. Acesso em: 20 jun. de 2023.
  18. SANCHES, S. Trabalho doméstico: desafios para o trabalho decente. Revista Estudos Feministas, v. 17, p. 879-888, 2009.
  19. SANTOS, M. H. L. A Representação da Mulher Negra no Trabalho Doméstico. In: XIII Encontro Estadual de História 'História e mídias: narrativas em disputas', 2020, Recife - PE. Anais Eletrônico do XIII Encontro Estadual de História: "História e mídias: narrativas em disputas". Recife-PE: CBL - Câmara Brasileira do Livro, 2020
  20. SANTOS, R. E.. O Movimento Negro e a luta pelas Políticas de Promoção da Igualdade Racial no Brasil. Kwanissa, São Luís, v.1, n.1, p.139-153, jan./jun. 2018.
  21. SILVA, A; SANTOS, A. B. SS; ARAÚJO, E. M.; GOES, E. F.; SANTOS , M. P; NERY, J.S ; BATISTA, L. E. . População Negra e Covid-19: reflexões sobre racismo e saúde. Estudos avançados, vol.34, n.99, São Paulo. 2020.
  22. TELLES, L. F. S. Libertas entre sobrados: contratos de trabalho doméstico em São Paulo na derrocada da escravidão. 2011. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo.
Registrado em: Edição nº 37 - Outubro de 2024
Marcador(es):
Fim do conteúdo da página