As Contribuições do Nzinga Informativo para o Feminismo Negro Brasileiro
A Revista Eletrônica PesquisABC possui o seguinte registro ISSN: 2675-1461
Ester Regina Vilela Andrade*, Bruna Mendes Vasconcellos**
* Discente do Bacharelado em Políticas Públicas - UFABC
* Docente do Centro de Ciências Naturais e Humanas da Universidade Federal do ABC, ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4017-0384
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Resumo: O feminismo negro é um campo teórico, político e metodológico central ao pensamento social brasileiro nos dias de hoje. A luta das mulheres negras é parte constitutiva de nossa história, e os anos 1970 são um marco importante nessa trajetória de luta. Nesse momento, algumas importantes referências do pensamento negro feminista contemporâneo emergem, como por exemplo o Nzinga Informativo e deixam registros que nos permitem compreender melhor suas contribuições e apostas políticas. Nessa pesquisa, realizamos um estudo dos jornais Nzinga Informativo, uma publicação central na articulação do feminismo negro no período de 1985 a 1989, e analisamos os conceitos e estratégias que foram referências para a teorização do feminismo negro brasileiro por meio dos escritos produzidos nesse jornal. Essa análise evidencia sobretudo as contribuições políticas e acadêmicas do informativo às mulheres negras e ao movimento feminista brasileiro, e nos permite compreender as agendas dos movimentos e os modos de articulação política das mulheres negras no cenário de redemocratização do país. O Nzinga é um marco como instrumento comunicacional do período, sendo o primeiro a considerar as intersecções de gênero, raça e classe, pois anteriormente os jornais progressistas existentes na época desconsideravam as imbricações inseparáveis dessas categorias de análise.
Palavras-chave: feminismo negro; Nzinga; gênero
Abstract: Black feminism is a theoretical, political and methodological field central to Brazilian social thought today. The struggle of black women is a constitutive part of our history, and the 1970s are an important milestone in this trajectory of struggle. At this moment, some important references of contemporary black feminist thought emerged, such as Nzinga Informativo and left records that allow us to better understand their contributions and political bets. In this research, we carried out a study of the newspapers Nzinga Informativo, a central publication in the articulation of black feminism in the period from 1985 to 1989, and we analyzed the concepts and strategies that were references for the theorization of black Brazilian feminism through the writings produced in this newspaper. This analysis highlights, above all, the political and academic contributions of the newsletter to black women and the Brazilian feminist movement, and allows us to understand the movements' agendas and the ways in which black women's politics are articulated in the country's redemocratization scenario. Nzinga is a milestone as a communicational instrument of the period, being the first to consider the intersections of gender, race and class, as previously the progressive newspapers existing at the time disregarded the inseparable overlaps of these categories of analysis.
Keywords: Black feminism; Nzinga; gender
Introdução
No início do século XX, surgiram, no Brasil, os primeiros jornais direcionados às questões de raça, especialmente: O Clarim da Alvorada (1924), A voz da Raça (1933), Senzala (1946). Esses jornais foram importantes para a criação da imprensa negra brasileira que se caracterizou por ser um meio de reivindicação dos direitos da população negra e de denúncia contra o racismo. Durante esse século também surgiram jornais feministas guiados pelas questões de gênero como o Nós Mulheres (1976), Mulherio (1981) e o ChanacomChana (1971). A criação desses periódicos contribuiu para a consolidação da imprensa alternativa e eles se caracterizaram por pensar a questão dos negros e das mulheres na sociedade brasileira.
Segundo Rios (2018), a imprensa alternativa possibilita compreender detalhadamente as redes, as agendas e os temas dos movimentos sociais no Brasil. Durante a década de 1980, essa imprensa realizou produções dos movimentos sindicais, sociais, feministas e negro. A vasta produção indica a vontade dos agentes civis na construção de uma sociedade democrática.
Esses jornais, embora tenham sido importantes para a construção da imprensa alternativa brasileira, não alcançaram incidir sobre a intersecção de gênero e raça. Enfrentando essa lacuna, feministas negras criaram em 1985 o Nzinga Informativo, primeiro jornal de mulheres negras, que considerava o racismo e o sexismo como estruturas das opressões e que atuam de maneira indissociável. O jornal foi elaborado por um coletivo de mulheres do Rio de Janeiro e uma de suas idealizadoras foi a intelectual Lélia Gonzalez.
O informativo foi criado durante o período que surgiram grupos “organizados por amefricanos” (GONZALEZ, 2020, p. 231). Nesse sentido, as décadas de 1970 e 1980 foram períodos marcantes para a luta coletiva das mulheres negras e foi nesse momento que coletivos importantes para o feminismo negros foram criados, destacam-se: Aqualtune, Luísa Mahin, Grupo de Mulheres Negras do RJ, Nzinga — Coletivo de Mulheres Negras, Centro de Mulheres de Favelas e Periferia, no Rio de Janeiro; Coletivo de Mulheres Negras de SP, Coletivo de Mulheres Negras da Baixada Santista, em São Paulo. Grupo de Mulheres do MNU, Grupo de Mulheres do Calabar, na Bahia; Grupo de Mulheres Negras Mãe Andresa; no Maranhão.
É no bojo de todas essas mobilizações sociais que surge o Nzinga, como fruto do esforço coletivo de mulheres negras organizadas. O Informativo tinha como sede a cidade do Rio de Janeiro e foram publicadas 5 edições no período de junho de 1985 a março de 1989. A publicação era escrita por mulheres negras e versava sobre a saúde das mulheres, a condição das mulheres negras na sociedade brasileira, processos políticos, entre outros temas que as pertenciam. O Informativo possuía algumas seções fixas como a “Aconteceu… Acontecendo”, que era dedicada a noticiar eventos relevantes às mulheres e à população negra. E em alguns números havia gêneros textuais distintos, como a entrevista com Mariza e Helena, integrantes do coletivo “Aqualtune”, na edição número 3 de fevereiro de 1986.
Através da análise documental das publicações do Nzinga Informativo, de todos os períodos disponíveis em arquivos digitais, esta pesquisa analisa as contribuições do Nzinga Informativo para o pensamento feminista negro brasileiro, bem como investiga as diversas temáticas abordadas na publicação e como estas refletiam as diferentes lutas enfrentadas pelas mulheres negras na sociedade brasileira. Destacamos, sobretudo, a importância do jornal para o fortalecimento de lutas que pensem efetivamente na articulação das diferentes categorias de opressão na construção de uma sociedade democrática.
O Nzinga e o pensamento de mulheres negras
Nzinga Informativo foi um boletim idealizado pelo “Nzinga: Coletivo de Mulheres Negras/RJ”. O nome faz referência à rainha dos reinos de Ndongo e Matamba, que lutou junto ao seu povo contra a colonização portuguesa no século XVII. Essa escolha relaciona-se ao desejo de resgatar um passado histórico que foi suprimido por uma "história" que só narra os feitos dos opressores
O coletivo foi fundado em 16 de junho de 1983 na sede da Associação de Moradores do Morro dos Cabritos, por um grupo de mulheres originárias sobretudo do movimento de favelas e do movimento negro: Jurema Batista (movimento de favelas), Geralda Alcântara (movimento de favelas), Miramar da Costa Correia (movimento de bairros), Sonia C. da Silva (movimento de favelas), Sandra Helena (movimento de favelas), Bernadete Veiga de Souza (movimento de favelas), Victoria Mary dos Santos (movimento negro) e Lélia Gonzalez (movimento negro) (GONZALEZ, 2020).
Figura 1: Capa da 4ª edição do Nzinga Informativo. Na foto estão algumas integrantes do coletivo.
Fonte: NZINGA INFORMATIVO, 1988, p. 1
O Nzinga tinha uma formação singular, composto por mulheres de diferentes posições sociais, moradoras de bairros de classe média e favelas, trabalhadoras com baixa escolaridade e estudantes universitárias reuniam experiências de diferentes movimentos: negro, feminista, de bairros e favelas. O ponto comum que as uniu foi as vivências que compartilhavam por serem mulheres negras.
Assim, o coletivo foi criado a partir dessa necessidade de articular o movimento de mulheres e o movimento negro, compreendendo que “somos mulheres - e como tais submetidas à discriminação sexual por que passam todas as mulheres, independente de raça etnia, classe social ou credo religioso [...] e somos negras” (NZINGA INFORMATIVO, 1988, p. 02). Desse modo, o coletivo tinha como objetivo aprofundar as questões específicas das mulheres negras e fortalecê-las para a luta geral.
Elas compreendiam a importância de uma organização à parte que pautasse as especificidades das mulheres negras, pois reconheciam a importância do movimento feminista e do movimento negro, no entanto essas articulações não contemplavam todas as demandas das mulheres negras. Os textos abordavam questões relacionadas às demandas coletivas, e a produção não possuía um caráter individual. Esse aspecto é percebido pela ausência de assinatura de autoria nos textos. As exceções ocorreram nos textos que foram escritos por mulheres que não faziam parte do Nzinga, como na quarta edição com os textos “Saúde das mulheres: o discurso das mulheres e a ação do governo”, de autoria de Maria José de Lima, enfermeira do INAMPS e membra do coletivo FEMPRESS- Brasil, e “Racismo e Machismo”, escrito por Pedrina de Deus, membra do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher/RJ e do Aqualtune.
O Nzinga e a redemocratização
O coletivo Nzinga surgiu em um contexto específico: o da redemocratização. Segundo Rios e Maciel (2017), essa mobilização autônoma das mulheres negras surgiu sobretudo nos anos 1980, após o fim da ditadura militar. Uma característica marcante das articulações desse período é a autodenominação como um movimento de mulheres com autonomia em relação a identidade coletiva, mas com diálogo com feminismo e com movimento negro.
As autoras denominam tal movimento de mulheres como clássico, marcado pela luta pela democracia, cidadania e pelos direitos civis e situado a partir da década de 1980. No segundo Nzinga Informativo, há um texto didaticamente construído que discorre sobre o processo da Constituinte, desde os atores que estavam envolvidos até o modelo escolhido para a formação da Assembleia Nacional Constituinte.
A Constituição é a lei mais importante de um Estado (no sentido de País). É ela quem indica como serão feitas e cumpridas as outras leis. Ela é tão importante que estabelece os direitos e deveres de cada cidadão e até onde o Estado pode interferir nas liberdades de cada um. Isto significa que a Constituição reflete a vontade do cidadão. Daí que um governo que se diz representante do povo não pode governar sem uma Constituição. Agora, o mais importante é saber quem elabora, isto é, quem faz a Constituição, para saber se os nossos desejos e nossas esperanças cabem dentro dela. É ai que entra a importância da CONSTITUINTE que é a reunião de pessoas escolhidas para fazer estas leis. (NZINGA, 1986).
Esse trecho demonstra o caráter formativo e popular que o Nzinga assumiu. O texto dialoga diretamente com o leitor e trata de um assunto que impacta sua vida, para as autoras era evidente que a disputa política em torno da Constituinte definiria o futuro material da maior parte da população brasileira, por isso em diferentes edições do Informativo elas tratavam da Constituinte.
A Comissão Provisória para Estudos Constitucionais era formada apenas por pessoas brancas, após grande pressão do movimento negro, Hélio Santos, ativista negro, foi designadado para compor a Comissão. No entanto, nesse primeiro momento as mulheres negras não tiveram nenhuma representante.
O Nzinga (1985) construiu o debate a cerca da importância de se eleger representantes da luta do movimento negro e feminista, uma vez que para elas era evidente que a nova Constituição não seria capaz de resolver todos os problemas, mas poderia garantir alguns direitos fundamentais. Nesse sentido, garantir representantes negras era garantir a representação da maior parcela da população.
No discurso realizado por Lélia em reunião da Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes, ela demonstra sua preocupação em não depositar todas as expectativas na nova Constituição, “nós não podemos jogar tudo em cima da Constituição, evidentemente. Nós temos que estar atentos, mas nós mesmos temos a nossa tarefa, temos a nossa tarefa de organizar, de mobilizar e de organizar a comunidade negra” (2020. p. 222).
Para o Nzinga, a Constituição seria um instrumento para a construção de uma sociedade democrática e com mais direitos para as mulheres e negros. As parlamentares negras seriam importantes para pautar as questões raciais e de gênero. Na quarta edição do Nzinga, as autoras evidenciaram quais eram as principais reivindicações para a elaboração da Constituinte.
Entre as medidas propostas estão a integração da história geral da África e do negro no Brasil no currículo escolar obrigatório, a definição do racismo como crime inafiançável sujeito à pena de reclusão, a instituição de datas como o Dia Nacional de Denúncia contra o racismo em 13 de maio e o Dia Nacional da Consciência Negra em 20 de novembro, além da proibição de relações diplomáticas com países que pratiquem discriminação racial e a garantia de direitos aos trabalhadores domésticos, incluindo salário mínimo, férias remuneradas e integração à Previdência Social (NZINGA INFORMATIVO, 1988).
A maioria das reivindicações apresentadas nessa edição do Nzinga foram concretizadas na Constituição. O que resultou nessa vitória foi a interação parlamentar e extraparlamentar (RIOS, 2018). Nesse sentido, a mobilização durante o processo de redemocratização foi essencial para legitimar o movimento negro e o movimento de mulheres como agentes políticos fundamentais na construção de um país democrático.
Considerações finais
Nota-se que o Nzinga foi um meio encontrado pela organização de mulheres negras para comunicar as suas vivências e reivindicações. O Informativo emergiu no contexto de forte mobilização social da década de 1980 e foi uma das primeiras produções realizadas exclusivamente por mulheres negras para situar na cena pública a luta organizada das mulheres negras. A primeira publicação do informativo, em 1985, coincide com o período de retomada das lutas que mobilizaram a sociedade no fim da ditadura militar e início da reconstrução de um país democrático.
Nesse sentido, o Nzinga dedicou algumas publicações para construir o debate político em torno da elaboração da Carta Magna. Uma estratégia apresentada era eleger representantes negros e que fossem comprometidos com a causa racial. Além disso, embora o Nzinga fosse um movimento suprapartidário, a deputada constituinte Benedita da Silva era sempre citada e tida como representante da organização da mulher negra no processo de transformação social. A Benedita era a figura que levava os debates que estavam sendo realizados nos movimentos sociais para âmbito institucional.
O Nzinga tinha uma construção coletiva e o informativo tinha como principal objetivo contribuir com a divulgação da luta das mulheres negras. Além disso, os debates realizados contribuíram para a formulação da agenda do movimento feminista negro. Destaca-se que as publicações dialogavam com outros movimentos sociais, como as comunidades eclesiais de base e o de moradia. Tal característica demonstra a articulação existente para lutar por uma vida digna e com direitos.
Referências Bibliográficas
GONZALEZ, Lélia, et al. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Zahar : Editora Schwarcz, 2020.
NZINGA INFORMATIVO. Rio de Janeiro, p. 1-7 jul 1985
NZINGA INFORMATIVO. Rio de Janeiro, p. 1-7 fev. 1986
NZINGA INFORMATIVO. Rio de Janeiro, p. 1-8, jul./ago. 1988
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