Ir direto para menu de acessibilidade.

Nós usamos cookies para melhorar sua experiência de navegação no portal. Ao utilizar o ufabc.edu.br, você concorda com a política de monitoramento de cookies.

Para ter mais informações como isso é feito, acesse a Norma de uso de cookies nos Portais da UFABC.

ACEITAR
Página inicial > Divulgação Científica > PesquisABC > Edição nº 37 - Outubro de 2024 > Campesinato E A Mobilização Étnica na Busca Por Reconhecimento, Um Estudo de Caso Sobre O Matopiba
Início do conteúdo da página

Campesinato E A Mobilização Étnica na Busca Por Reconhecimento, Um Estudo de Caso Sobre O Matopiba

imagem ilustrativa

A Revista Eletrônica PesquisABC possui o seguinte registro ISSN: 2675-1461

Flávia Pereira Sant’Anna [1]* , Thais Tartalha do Nascimento Lombardi 1 

[1] Universidade Federal do ABC

Resumo: A contemporaneidade traz diversos desafios relacionados à etnicidade e à mobilização das populações tradicionais, de forma que a temática está cada vez mais presente no debate sobre os usos dos territórios e características de distribuição da população. Somado a isso, é possível perceber como o debate tem incorporado a  diversidade no entendimento de usos do território e das formas de organização e dinâmica social, como suporte pelas demandas pelo reconhecimento de direitos, especialmente aqueles ligados ao território. Assim, a fim de compreender esses processos, essa pesquisa buscou entender como eventos ou contextos macro mobilizam identidades étnicas e luta política pela defesa de seus direitos. Recortando os conflitos gerados como consequência ao avanço da fronteira agrícola na região do Matopiba, no Cerrado brasileiro, este trabalho se desenvolveu em torno dessas temáticas primordiais: território, etnicidade e fronteira agrícola, dando destaque aos conflitos da região estudada e as populações tradicionais ali presentes.

Palavras-chave: Identidade étnica, Etnicidade, Território, Matopiba, Conflito, Agronegócio

 

Abstract: Numerous challenges related to ethnicity and the mobilization of traditional populations are seen in contemporary times, turning those themes into central aspects of debates regarding land use and population distribution. Additionally, there is a growing need to incorporate diversity into our understanding of territory use and social dynamics, as a driver to understand rights recognition demands, mostly on land. Thus, this research sought to understand how macro events or contexts mobilize ethnic identities and political struggles to defend their rights. It focuses on the conflicts arising from the expansion of the agricultural frontier in the Matopiba region, located in the Brazilian Cerrado. Structured as a critical analysis, using territory, ethnicity, and the agricultural frontier as core concepts/themes for the analysis and how they unveil conflicts affecting traditional populations in the region.

Keywords: Ethnic identity, Ethnicity, Territory, Matopiba, Conflict, Agribusiness

 

*Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

ORCID ID: https://orcid.org/0000-0003-0742-997X

 

Introdução

Compreender as relações dos povos tradicionais e quilombolas da região do Matopiba com o território que habitam e os conflitos engendrados a partir do avanço da fronteira agrícola e sua lógica de ocupação espacial  foi o objetivo principal desta pesquisa. Neste sentido, o território aparece como conceito crucial para a compreensão do objeto de pesquisa, articulando etnicidade, mobilização das populações tradicionais e reivindicações dos povos originários e a partir dele e outras temáticas associadas se desenvolveu uma análise crítica das dinâmicas na região. A proposta foi dar luz a populações que historicamente foram invisibilizadas pelo poder público, e que tiveram suas demandas ignoradas, mas que através da identificação e autodeclaração étnica estão se reconhecendo dentro desse sistema e se organizando socialmente, tanto na busca por direitos de acesso, seja ao território ou outras demandas (língua, etnia, costumes, etc.), quanto em confronto ao avanço da fronteira agrícola [2] [5].  Em particular, a luta pelo reconhecimento como um movimento de resistência a esse avanço, tornou-se um aspecto crucial dessa mobilização no Brasil, nas mais diferentes localidades onde residem comunidades e povos cujas práticas e territorialidades se ancoram em uma tradicionalidade do uso. Tal tradicionalidade também caracteriza seus processos de ocupação, muitas vezes ocorridos fora de estruturas jurídicas estatais e organizadas a partir do processo de deslocamento de populações no território brasileiro, a consolidação da ocupação do território e suas dinâmicas sociais e culturais, que envolvem normas de parentesco e etnicidade [1] [7]. 

mapa matopiba flavia pereira santanna

Figura 1: Mapa localizando a região do Matopiba (em magenta) e os estados onde se localiza (em laranja). 

Fonte: Observatório Matopiba. Disponível em: https://observatorio-matopiba.com.br/quem-somos


O local de estudo em questão se localiza no Cerrado brasileiro, em uma região denominada de Matopiba. Sendo seu nome formado pelo acrônimo dos estados que a compõem (MAranhão, TOcantins, PIauí e BAhia), e é uma área que embora de ocupação antiga e tradicional tem sofrido uma transformação na dinâmica fundiária com o intenso avanço do agronegócio.  

Assim, muitos dos conflitos fundiários se dão em torno do intenso avanço da fronteira agrícola versus a resistência e a reivindicação desse território por parte das populações tradicionais. Por este motivo refletir sobre quais territórios estão em disputa nesses conflitos é essencial para visibilizar as lutas por permanência e direitos de populações cuja ocupação tradicional da região está sendo ou negada, ou ameaçada [3] [4].  

Essa reflexão parte de um conceito de território que o coloca para além de um espaço rentável, ou seja, um espaço de produção cultural, de vivência e o relaciona com a ideia de demanda por direitos [1]. Principalmente demandas advindas dessas populações tradicionais e povos originários, trazendo essa questão do auto-reconhecimento como grupo e da identificação com territórios e territorialidades específicas [2]. Estabelecendo assim, a importância da etnicidade e o impacto que ela e a cultura tem na organização dessas populações, tanto internamente, quanto nas suas reivindicações de forma que as singularidades de cada grupo e cada movimento social implicam em uma mobilização particular, com demandas e territórios específicos [1] [2] [6]. 

Sendo esta uma pesquisa de cunho teórico, para que fosse possível fazer uma análise crítica de todas essas temáticas foi imprescindível o acesso a diversas bibliografias disponíveis tanto online quanto em formato físico. Pois, partindo de conceitos abrangentes como território, etnicidade, fronteira agrícola, e estudos sobre a região foi possível compreender o que ocorre na região do Matopiba com as populações tradicionais e as mobilizações étnicas e políticas articuladas por esses grupos. Além desses materiais, durante a execução do projeto foram cursadas as disciplinas Território & Sociedade e Estudos Étnicos-Raciais, que serviram como complementação teórica, tanto auxiliando com a seleção bibliográfica, quanto com conceitos centrais (território e etnicidade).

Somado a isso, a participação no projeto “A última fronteira agrícola: Análise sobre os movimentos populacionais na região do Matopiba” (CNPq 423480/2021-9), em que o grupo de estudo se reunia quinzenalmente para debater temáticas da região, contribuiu para a compreensão da dinâmica territorial, e consequentemente para a escolha de um território como foco mais detalhado da pesquisa. Com isso o projeto se aprofundou nas mobilizações e no impacto que a etnicidade tem na composição da luta política das comunidades de Fundo e Fecho de Pasto [4], em um território situado na fronteira de expansão do agronegócio, uma área cada vez mais foco de disputa, violência e confronto. E que a mobilização e as formas de resistência não tem conseguido fazer frente ao modelo vigente na região, mas estão se organizando para defender seus direitos [3] . Ou seja, esse cenário brasileiro que advém de um longo contexto histórico de conflito por terra e apagamento de populações vêm se transformando e ganhando o protagonismo desses grupos [6].

Com o encaminhamento do projeto, se tornou evidente a necessidade de mapear uma população específica que pudesse ser trabalhada de forma mais detalhada para o entendimento dessa relação território, etnicidade e fronteira agrícola, sendo as Populações de Fundo e Fecho de Pasto as escolhidas, por serem populações tradicionais encontradas no território do Matopiba, que mobilizam seu capital político através de um processo de  identificação étnica, denunciando o impacto da fronteira agrícola na comunidade, em particular ameaçando sua forma específica de modo de vida e consequentemente de associação com o território.

 No contexto da demanda não existe posse do mesmo, a terra é comunitária, o que torna a mobilização diferente se comparada com a demanda clássica da reforma agrária que se organiza em torno da propriedade privada, visto que suas reivindicações são por uma regularização fundiária, que permita o uso da terra por meio de uma titulação coletiva. Outro aspecto se relaciona com a forma de organização social do grupo, pois, como entendem o território coletivamente não existe uma relação de poder entre os membros, ou seja, todos são iguais na comunidade. Isso também é visto como uma questão identitária que os diferencia de outros grupos populacionais e mesmo de outras populações tradicionais [2] [4].

Considerando sua forma de organização e relação única com o território, as reivindicações por direitos e reconhecimentos, o avanço da fronteira agrícola no seu espaço de vivência e  os conflitos presentes foi possível compreender a importância que a etnicidade tem no contexto das mobilizações. Visto que, grande parte dos conflitos são desencadeados por disputas fundiárias conectadas a visões conflitantes, uma do agronegócio e uma das populações tradicionais. O agronegócio, com sua estrutura produtiva agrícola e pecuária estruturada a partir de uma lógica do mercado e de produção monocultora de commodities, em busca de uma expansão de áreas produtivas, têm buscado as áreas do Matopiba por sua pouca formalização da estrutura fundiária. Isto pois, sendo uma área de ocupação tradicional, muitas das ocupações do território estão ancoradas em sistemas tradicionais de posse, quase sempre não validados no sistema jurídico de ordenamento territorial, caracterizando um grande vazio fundiário, quando na verdade é o oposto. O Matopiba é um enorme mosaico de usos e ocupações tradicionais de agricultores familiares, populações tradicionais e famílias tradicionais de latifundiários. Contudo, o vazio jurídico abre espaço para a especulação do agronegócio sobre essas terras, invalidando o direito de posse dessas populações [3] [4].  

Assim, os conflitos por terra, decorrentes do avanço da fronteira agrícola, e as mobilizações por parte das populações tradicionais se tornaram uma forma de resistência e reivindicação de direitos. Ou seja, o reconhecimento como uma identidade étnica, grupo dotado de cultura, hábitos e tradições específicas se faz importante para que as reivindicações sejam entendidas como uma necessidade daquele grupo em particular, com um território onde já existem uma série de práticas que são realizadas levando o entorno em consideração [2] [6] [7].

As populações de Fundo e Fecho de Pasto representam uma dessas  formas distintas de vida no campesinato, localizadas mais especificamente no sertão semiárido da Bahia. Caracterizam-se pela prática tradicional de uso coletivo da terra para a criação extensiva de caprinos e ovinos, através de pastagens compartilhadas. Estas comunidades, formadas por famílias sertanejas unidas por laços de parentesco e reciprocidade, adotam o sistema agrosilvopastoril como parte integrante de suas estratégias de convivência com as adversidades  climáticas do semiárido, juntamente com formas específicas de organização e ocupação territorial [8].

São também um dos casos em que a luta e mobilização se faz constante, principalmente no sentido de estar consecutivas vezes reafirmando a identidade étnica e sua forma de viver. Pois, além de estarem localizadas no Matopiba, que é uma região de intensa expansão da fronteira agrícola, foi uma comunidade que precisou se mobilizar através de suas especificidades para ser reconhecida pelo Estado e continua se mobilizando para ter direito sobre seu território. Já que existe uma movimentação de tentar fracionar a terra, o que para essa população não faria sentido, já que ela funciona de forma coletiva e em comunidade. 

 mapa populaes de fundo e fecho de pasto bahia 2015 flavia pereira santanna 1 1

Figura 2: Visualização das distribuições das associações das comunidades de Fundo e Fecho de Pasto em 2015 e áreas adjacentes das comunidades. Fonte dos dados: CDA, 2015. Base cartográfica: IBGE (2013), SEI (2017). Elaboração: Geografar por Laura Chamo, 2017 Disponível em: https://geografar.ufba.br/acervo-cartografico?field_categoria_tid=435

Além disso, essa e outras populações enfrentam um enorme desafio que é a invisibilização, já que ocorreu um apagamento histórico dessas populações  que foram entendidas como um atraso na sociedade, e seus territórios como vazios e improdutivos [1] [2]. Isso se deu principalmente porque suas lógicas de existência não compactuam com o avanço desenfreado do agronegócio. Nos dias de hoje esse apagamento somado a falta de políticas públicas voltadas para questão territorial, étnica e identitária, acaba por manter as populações muito centralizadas em suas próprias regiões, não conseguindo atingir, e consequentemente angariar apoio, para além de seus núcleos.

Tendo isso em vista,  é imprescindível que estudos sejam feitos e que deem visibilidade a muitas dessas populações das quais a sociedade brasileira tem pouco ou nenhum conhecimento a respeito. Afinal a realidade das populações de Fundo e Fecho de Pasto na região do Matopiba, com situações de conflito e consequente movimentação e luta política, não é um fato isolado. Pelo contrário, ela é extremamente presente e deve ser entendida como resultado da desigualdade nas relações territoriais, o que é o núcleo da questão agrária brasileira [4]. Assim, a visibilidade pode ser um caminho para fortalecer essas mobilizações e romper com esses ciclos, contribuindo para esse movimento que busca reconhecimento não só social, mas também jurídico e acesso aos direitos dos quais esses grupos carecem.

Pode-se concluir portanto que o conflito por terra no Brasil ainda está muito longe de acabar. A falta de interesse do poder público somado ao controle e domínio que a indústria do agronegócio tem no país não gera perspectivas promissoras. Infelizmente as populações tradicionais e povos originários, que convivem de forma harmônica no território e que têm práticas sustentáveis são os mais prejudicados. Muitos acabam por sair do lugar onde cresceram e firmaram raízes por não ter como sustentar a família em um ambiente tomado pelo maquinário industrial, ou então pior, sem ter como usufruir da terra devido a destruição, o desmatamento e a poluição do solo e da água.

Esse é um cenário que não tem expectativa de melhora, e enquanto essa for a realidade em regiões da Floresta Amazônica, Cerrado, Caatinga e Pantanal as populações locais precisarão se mobilizar e resistir para continuar vivendo das formas tradicionais com as quais sua cultura se baseia. Contudo, esse também é um debate que vem crescendo e se fortalecendo, algo extremamente importante, visto que a partir do estudo desses grupos, do entendimento dos conflitos e demandas é possível que outros núcleos da sociedade, e não só aqueles diretamente ligados às mobilizações sociais possam se sensibilizar pela luta de outros povos. Isso não é a solução para esse eminente problema, mas é  um passo rumo a um país mais empático com todos os modos de vida que habitam ele. 

Referências 

[1] Guedes, André Dumans. Lutas por terra e território, desterritorialização e território como forma social. Revista brasileira de estudos urbanos e regionais, v. 18, n. 1, 2016, p. 23. Disponível em: https://doi.org/10.22296/2317-1529.2016v18n1p23.  Acessado em: 08/03/2024. 

[2] De Almeida, Alfredo Wagner Berno. Terras tradicionalmente ocupadas: processos de territorialização e movimentos sociais. Revista brasileira de estudos urbanos e regionais, v. 6, n. 1, 2004, p. 9-32. Disponível em: https://doi.org/10.22296/2317-1529.2004v6n1p9.   Acessado em: 08/03/2024.

[3] Favareto, A. (Coord.). Entre chapadas e baixões do Matopiba: dinâmicas territoriais e impactos socioeconômicos na fronteira da expansão agropecuária no cerrado. São Paulo: Ilustre Editora, 2019.

[4] Alcântara, Denilson Moreira de; Germani, Guiomar Inez; Sampaio, Jose Levi Furtado.(2012) Há uma Lei no meio do caminho: Luta para permanecer na terra dos Fundos e Fechos de Pasto na Bahia. Revista Terra Livre. 

[5] ACSELRAD, Henri. Ambientalização das lutas sociais-o caso do movimento por justiça ambiental. Estudos avançados, v. 24, n.68, 2010. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0103-40142010000100010.  Acessado em: 08/03/2024.

[6] ALMEIDA, Mauro W. B. Das narrativas agrárias à nova reforma agrária. Revista Ruris, vol. 15, n. 1, 2023, p. 253-264. DOI: 10.53000/rr.v15i1.18345.  Acessado em: 08/03/2024.

[7] ALMEIDA, Mauro W. B. Narrativas agrárias e a morte do campesinato. Revista Ruris, vol. 1, n. 2, 2007. Disponível em: https://doi.org/10.53000/rr.v1i2.656 .  Acessado em: 08/03/2024.

[8] CAMAROTE, Elisa M. Comunidades de Fundo de Pasto: afinal, quem são seus habitantes?. Geografar UFBA, 2009. Disponível em: https://geografar.ufba.br/sites/geografar.ufba.br/files/2009_camarote.pdf. Acessado em: 09/03/2024.

Registrado em: Edição nº 37 - Outubro de 2024
Marcador(es):
Fim do conteúdo da página