Medidas de acesso ao bem viver na cidade: Uma Descrição dos Motivos e Destinos das Viagens de Usuários de Transporte Público na Região Metropolitana de São Paulo
A Revista Eletrônica PesquisABC possui o seguinte registro ISSN: 2675-1461
Mateus Gregorio Novaes*, Mônica Yukie Kuwahara**
* Discente do Bacharelado em Ciências Econômicas UFABC
** Docente do BCE e do PPG-Economia da UFABC
Resumo: A pesquisa se preocupa com a qualidade de vida nos grandes centros urbanos. Entende que há oportunidades e dificuldades associadas à infraestrutura de transporte disponível. Estabelece como objetivo geral identificar índices que permitam descrever as oportunidades que a infraestrutura de transportes disponibilizaria aos habitantes da cidade. Através da análise da literatura de economia urbana e a aplicação da abordagem das capacitações, buscam-se os indicadores de acessibilidade que sirvam a compreensão das oportunidades disponíveis às pessoas para suas realizações em termos de acesso a emprego, saúde e educação. A reflexão realizada indica que domicílios mais distantes das localidades com empregos apresentam privações em várias dimensões da qualidade de vida além da própria dimensão de transporte.
Palavras-chave: Acessibilidade; Bem-estar; Capacitações; Indicadores; Mobilidade urbana; Oportunidades.
Abstract: The research concerns the quality of life in large urban centers. It understands that there are opportunities and difficulties associated with the transport infrastructure available. The main goal is to identify indexes that allow to describe the opportunities that the transport infrastructure would make available to the inhabitants of the city. Through the analysis of urban economics literature and the application of the capabilities approach, accessibility indicators are sought to help understand the opportunities available to people for their achievements in terms of access to employment, health and education. The reflection indicates that living far away from the localities with jobs present deprivations in various dimensions of the quality of life in addition to the transport dimension itself.
Keywords: Accessibility; Well-being; Capabilities; Mobility; Opportunities.
Introdução
Os congestionamentos, transporte público lotado, grandes tempos de deslocamento são alguns dos problemas enfrentados em uma grande metrópole. Este conjunto de fenômenos associados à vida em grandes adensamentos humanos constituem externalidades que implicam em custos que afetam a qualidade de vida dos cidadãos (Kuwahara; Maciel, 2020).
As dificuldades associadas ao deslocamento dos trabalhadores influenciam negativamente sua produtividade (Haddad, 2000). O desempenho dos trabalhadores costuma ser menor quanto mais tempo necessitam para realizar seu deslocamento e isto se apresenta de forma ainda pior com aqueles que precisam enfrentar grandes congestionamentos pelo caminho. Também afetam a saúde dos cidadãos através da poluição e dificuldade de acesso a hospitais e postos de saúde (Anand, 2018). As ideias, projetos e estudos de planejamento devem olhar amplamente para seus cidadãos, pois as condições impostas a uma pessoa que trabalha e vive próxima a uma capital serão diferentes daquelas impostas a uma que vive afastada do centro urbano.
Para desenvolver políticas que visam reduzir a desigualdade e melhorar o bem-estar dos cidadãos e seus acessos à saúde, emprego e estudo, é necessário estar atento aos indicadores relacionados aos cenários de acessibilidade urbana. Requer, portanto, analisar a facilidade de acesso das pessoas destes determinados locais (Pereira, 2019; Donovan, 2018; Arbex, 2016). Estas políticas são essenciais não apenas do ponto de vista de bem-estar individual, mas também para a integração do território, para aumentar e facilitar as oportunidades de acesso aos locais centrais e mais remotos, e também para o funcionamento da economia.
Uma alternativa de análise das desigualdades socioespaciais se dá pelo estudo dos impactos do espraiamento urbano para com a acessibilidade, de forma a impactar nas desigualdades socioespaciais locais. O espraiamento urbano se dá em um processo de segregação espacial que se separa em duas dimensões, a segregação voluntária e a segregação imposta, a primeira dimensão é realizada por populações de alta renda que buscam ocupar certos espaços urbanos específicos e fechados como os condomínios e a segunda se dá a população de baixa renda que são obrigado a morar, ou deixar de morar, em determinado local, especialmente nas periferias neste caso. (Lima, 2021; Carneiro, 2018). As análises por essa alternativa vão buscar entender se as pessoas com diferentes níveis de renda sofrem esse processo de maneira diferente.
A abordagem das capacitações oferece uma ferramenta e uma estrutura analítica para conseguir conceituar e avaliar os fenômenos da pobreza, desigualdade e bem-estar. Ao se concentrar nas pessoas e nas dificuldades que elas enfrentam para florescer e alcançar suas realizações, a abordagem indica a necessidade de perspectivas plurais, interdisciplinares e multidimensionais (Robeyns, 2005). De acordo com Amartya Sen (2000), as avaliações e políticas deveriam focar nos que as pessoas são capazes de fazer e ser, e com isto ir removendo os obstáculos que dificultam o acesso delas às suas liberdades, para que com isso, estas pessoas consigam uma maior qualidade de vida.
O conceito de capacitações pode ser representado como o que as pessoas são efetivamente capazes de ser ou fazer. A acessibilidade como uma capacitação pode ser entendida como a possibilidade das pessoas conseguirem se engajar nas variadas atividades fora de seus domicílios, enquanto a mobilidade como capacitação pode ser entendida como a condição da pessoa ser física, social e economicamente capaz de se mover de um lugar a outro e interagir socialmente (Vecchio e Martens, 2021).
Acessibilidade e mobilidade podem ter mais de um significado e podem ser calculadas de mais de uma forma dependendo do que está se analisando e quais são as questões que se busca responder. Alguns autores buscam analisar o tema através das questões do território, seja pelo espraiamento, ou analisando a forma como estão distribuídas as oportunidades pelo espaço (Lima, 2021; Carneiro, 2018). Outros autores buscam analisar se os indivíduos conseguem alcançar as oportunidades desejadas a partir de um determinado local (Pereira, 2019; Adli e Donovan, 2018; Arbex, 2016). Também é possível estudar os deslocamentos propondo incluir uma medida de acessibilidade a indicadores multidimensionais, relacionando essa dimensão com outros aspectos da vida do indivíduo (Kuwahara e Maciel, 2020).
Neste contexto, a pesquisa apresenta a seguinte questão investigativa: Como medir as dificuldades de se viver em grandes centros urbanos? De tal feita, o objetivo da pesquisa se define como identificar diferentes indicadores de mobilidade e acessibilidade urbana, buscando também diferenças de conceituação nas categorias de mobilidade e acessibilidade entre as distintas abordagens, além de salientar a contribuição da abordagem das capacitações para os estudos no tema.
Metodologia
Os procedimentos de pesquisa envolvem predominantemente a revisão bibliográfica. Identificaram-se dentre os indicadores analisados, aqueles propostos por Kuwahara e Maciel (2020), MIQL-M (Índice multidimensional de qualidade de vida), TAI-M (Indicador de acessibilidade do transporte) e MIQL-T (Índice multidimensional de qualidade de vida com dimensão de transportes), todos estabelecidos com os dados do censo de 2010 para a Região metropolitana de São Paulo.
O MIQL é formado por uma média geométrica de subíndices para as seguintes dimensões: renda, educação, sobrevivência, habitação, infraestrutura e acesso à informação. Os subíndices são indicadores gerados a partir das informações da componente amostral do Censo de 2010, estabelecidos por Kuwahara e Maciel (2020) através de procedimentos que incluem a sistematização de cada grupo de variáveis de cada dimensão em índices fuzzy e sensibilização dos dados à presença de desigualdades na distribuição. O TAI segue o mesmo tipo de tratamento se apresentando como o indicador de acesso ao trabalho. Ao ser incorporado no cálculo do MIQL, denominam a média obtida de MIQL-T, um indicador multidimensional com transportes.
Os indicadores selecionados favorecem análises multidimensionais das condições de municípios, permitindo comparar a acessibilidade a outras dimensões da qualidade de vida. A comparação é feita através da análise do posicionamento relativo dos municípios, uma vez que os índices permitem um ranqueamento em termos dos indicadores propostos. Dados da pesquisa Origem e Destino descrevendo os deslocamentos nesta região em 2017 são comparados com os resultados dos indicadores de 2010.
Resultados e Discussão
A análise dos indicadores indica que as regiões mais próximas da região central, com mais empregos, são as que têm mais oportunidades nas várias dimensões. Já as regiões mais afastadas têm piores resultados nas várias dimensões da qualidade de vida.
Municípios denominados como “dormitórios” como Ferraz de Vasconcelos, Mauá, Francisco Morato, Itaquaquecetuba e Carapicuíba apresentam pioras nas posições relativas. Isso significa que a baixa qualidade de vida em Ferraz de Vasconcelos, que é o 22 em qualidade de vida, por exemplo, fica ainda pior se considerar a sua classificação em termos de acessibilidade, pois passa a ser o 33.
Os municípios melhor ranqueados no indicador do TAI demonstram melhorias no indicador de qualidade de vida após adição da dimensão de acessibilidade, porém ainda não apresentam melhorias consideráveis com apenas a adição dessa dimensão. Este pode ser um indício de que ter bons resultados em termos de acessibilidade ao emprego não necessariamente estabelece mudança concreta para a vida daqueles que vivem em municípios com baixos resultados de bem-estar.
Tabela 1. Municípios com piores e melhores ranqueamentos de acessibilidade.
MUNICÍPIO |
TAI |
MIQL-M |
MIQL-T |
Embu |
35 |
23 |
28 |
Franco da Rocha |
36 |
37 |
39 |
Itapecerica da Serra |
37 |
34 |
37 |
Ferraz de Vasconcelos |
38 |
22 |
33 |
Francisco Morato |
39 |
30 |
38 |
Guararema |
1 |
31 |
24 |
São Lourenço da Serra |
2 |
38 |
35 |
Biritiba-Mirim |
3 |
35 |
29 |
Juquitiba |
4 |
39 |
36 |
Cajamar |
5 |
25 |
18 |
Fonte: Elaboração própria a partir de IBGE. Componente amostral do Censo de 2010.
Os dados extraídos da Pesquisa Origem e Destino indicam que a RMSP tem boa parte de suas viagens concentradas com modo principal por automóvel, o que pode ser associado a congestionamentos maiores e demandando políticas para que haja uma melhora no deslocamento. Ao analisar a distribuição da rede ferroviária na região é possível perceber uma concentração mais alta nas regiões do centro aprofundando este problema.
Ao analisar os dados dos motivos e do modo de viagem foi possível perceber que os principais motivos que são Educação e Trabalho demonstram diferentes modos principais mais utilizados, enquanto o Trabalho tem uma distribuição maior com os modos motorizado individual e coletivo. O motivo de Educação se concentra principalmente no modo não motorizado, o que demonstra uma diversificação na forma de acesso para Educação do que para trabalho (Tabela 1).
Tabela 2. Quantidade de viagens por modo principal e motivo de viagem.
Modo Principal |
Trabalho |
Educação |
Compras |
Saúde |
Lazer |
Outros |
Total |
Coletivo |
7.681.318 |
4.555.328 |
583.291 |
892.307 |
484.756 |
1.096.488 |
15.293.488 |
Individual motorizado |
6.409.913 |
3.068.227 |
823.802 |
720.591 |
865.585 |
1.097.550 |
12.985.667 |
Não motorizado |
4.421.039 |
7.046.720 |
522.121 |
214.365 |
466.285 |
1.056.320 |
13.726.851 |
Total |
18.512.270 |
14.670.275 |
1.929.215 |
1.827.264 |
1.816.626 |
3.250.357 |
42.006.007 |
Fonte: Elaboração própria baseada em METRO. Pesquisa Origem e Destino, 2017.
Ao estudar os tempos de viagem conjuntamente com os modos de viagem principal é possível perceber que os tempos de deslocamento por modos coletivos em média são duas vezes maiores que a média das viagens por modo individual. Isto demonstra uma restrição de autonomia e escolha dos indivíduos ao se deslocar.
Gráfico 1. Duração de viagem média pelo Modo principal.
Fonte: Pesquisa Origem e Destino, 2017. Elaboração própria.
A disponibilidade de modais de transporte, considerados recursos na abordagem das capacitações, na ausência de fatores de conversão que permitam não apenas o acesso, mas também o pleno uso desses recursos, não garantem funcionamentos (no sentido de realizações) que permitam a qualidade de vida das pessoas. A abordagem das capacitações aplicada à análise dos dados permitiu identificar na presença de dificuldades de deslocamentos a existência de privações à vida plena. As dificuldades ou a forma como estão distribuídas as oportunidades de realizações inibem as escolhas, restringindo a liberdade e as possibilidades de florescimento e desenvolvimento (Nussbaum, 2003).
Considerações Finais
Os resultados encontrados na análise dos indicadores demonstram que a acessibilidade influencia diretamente o bem-estar das pessoas. Melhorias na acessibilidade se tornam ainda mais relevantes quando acontecem em conjunto com melhorias em outras áreas que afetam o bem-estar.
Para se obter medidas de bem-estar é importante avaliar o que leva os indivíduos a terem ganhos em qualidade de vida, o que as pessoas têm aspirações de serem ou terem. A abordagem das capacitações aqui utilizada alerta para a necessidade de se apresentar análises plurais e multidimensionais e condicionou a análise para a mobilidade e acessibilidade urbana.
Ademais, a abordagem contribui ao destacar a necessidade de foco nas escolhas e nas liberdades de cada indivíduo, distanciando das discussões concentradas na renda. Para isso, salienta a pluralidade informacional e a pluralidade de valores. Este tipo de preocupação, a de investigar o bem-estar por mais de uma dimensão, busca entender os vários fatores que estão afetando a qualidade de vida.
A análise descritiva das viagens aponta que o transporte coletivo é o principal modo de viagem, assim como também demonstra que as viagens realizadas com este modo como modo principal tendem a ser duas vezes mais demoradas que as viagens com o modo principal individual. Um dado que alerta para a necessidade de melhorias na acessibilidade em termos de redução do tempo de deslocamento não apenas como uma necessidade do sistema de transportes, mas por se relacionar a outras dimensões.
É possível portanto destacar a necessidade de políticas de mobilidade nessa região, porém não somente focadas apenas em diminuir os tempos de viagem, mas que também ajudem a distribuir melhor as oportunidades pela região e com isso ajudem também a diminuir a demanda por viagens nas cidades centrais e promover melhorias de bem-estar e qualidade de vida.
Ao apresentar que o principal modo de viagem utilizado é também o modo com piores tempos de deslocamento se faz evidente uma desigualdade que afeta diretamente a maioria das pessoas. Os modos principais com maiores durações de viagem são o metrô, trem e monotrilho, ou seja, transportes ferroviários que não necessitam enfrentar trânsitos congestionados e costumam apresentar grande eficiência quando analisamos os trajetos que dependem exclusivamente desses modos.
Isto demonstra uma possível dificuldade de acesso a estes modos e se apresenta como necessário um aumento de investimentos com o objetivo de melhorar a integração entre linhas ferroviárias, corredores de ônibus e terminais urbanos. A criação de novas linhas e terminais também é um projeto que consegue afetar diretamente estes tempos de deslocamento, especialmente, quando atinge regiões que apresentam mais dificuldades e pouca infraestrutura existente.
Políticas de incentivo ao uso de transportes coletivo e não motorizado apresentam ótimos resultados tanto nos tempos de deslocamento quanto nos índices de acessibilidade, especialmente quando alinhadas a investimentos na infraestrutura para viabilizar a possibilidade de escolha e utilização destes modos.
Agradecimentos
Este estudo foi realizado com o auxílio financeiro proporcionado pela bolsa PIC concedida pela UFABC conforme regras descritas no edital número 4 de 2022 apresentado pela Pró-Reitoria de Pesquisa.
Referências Bibliográficas
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ARBEX, R.; PACIFICI, M.; RIOS, L.; GIANNOTTI, M. A.; CARNEIRO, C. Análise espacial da acessibilidade no município de são paulo através de self organizing maps. Revista Brasileira de Cartografia, [S. l.], v. 68, n. 4, 2016.
HADDAD, Eduardo A. e Vieira, Renato. S. Mobilidade, Acessibilidade e Produtividade: Nota sobre a Valoração Econômica do Tempo de Viagem na Região Metropolitana de São Paulo. Texto de discussão 8-2015. São Paulo: Nereus, 2015.
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KUWAHARA, Mônica Yukie; Maciel, Vladimir Fernandes. Qualidade de Vida e Desigualdades nas Metrópoles Brasileiras. Curitiba: Appris, 2020.
Metrô. Companhia do Metropolitano de São Paulo. Pesquisa Origem e Destino 2017: base de dados. São Paulo, SP, 2017. https://transparencia.metrosp.com.br/dataset/pesquisa-origem-e-destino
NUSSBAUM, Martha. Capabilities as Fundamental Entitlements: Sen and Social Justice. Feminist Economics, v.9: 2-3, p.33-59, 2003
PEREIRA, Rafael H. M.; BRAGA, Carlos. K. V.; SERRA, Bernardo; NADALIN, Vanessa. Desigualdades socioespaciais de acesso a oportunidades nas cidades brasileiras, 2019. Texto para Discussão Ipea, 2535. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), 2019.
ROBEYNS, Ingrid. The Capability Approach: a theoretical survey. Journal of Human Development, Vol. 6, n. 1, p. 93-117, 2005.
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VECCHIO, Giovanni & MARTENS, Karel. Accessibility and the Capabilities Approach: a review of the literature and proposal for conceptual advancements, Transport Reviews, 2021.
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